quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Faroeste Caboclo

Naqueles dias Douglas andava feliz pelo conjunto. E todo mundo olhava para ele com uma admiração invejosa. Inclusive os moleques que deram uma trégua nas desavenças. Nem ser o perna de pau da pelada podia embaçar a sua imagem. E quando se via o moleque em pé na esquina ou e em qualquer calçada estufando o peito, ninguém pensava que ele fosse metido. Apenas que estava gozando os louros da fama. Talvez algum desavisado da rua pudesse perguntar: porque que o Douglas tá tão metido? E nós tivemos que engolir aquela marra dele durante séculos. Mas até hoje quando fica bêbado ele começa com a mesma ladainha: hei, lembra de quando eu decorei a letra de Faroeste Caboclo? Hein, lembra? Ele foi o primeiro maluco a decorar aqueles nove minutos de versos. É como se ele fosse um dos autores da letra. E ele fala do Renato Russo com uma intimidade que parece um parente próximo. E no dia da morte do saudoso poeta, ele chorou um Rio Amazonas inteiro.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Dostoiévski Vs. Sidney Sheldon

Eu não tinha dinheiro para comprar livros. Nem passagem de ida e volta para ir a uma biblioteca melhor. Então querendo ou não, aquele era o acervo que eu tinha disponível. Ainda não tava metido a besta, e não conhecia nenhum pseudo-intelectual para me dizer quais autores deveriam ser lidos. Então eu podia ler Dostoiévski num dia e no outro Sidney Sheldon. E na minha cabeça tudo era literatura e tudo era bom. Livro era livro. Hoje eu talvez não leia o Sheldon pensando que ele é limitado. E não alimente uma nostalgia obsessiva em relação a Dostoiévski, por exemplo. Mas tanto o Sheldon quanto o Dostoiévski cumpriram o seu propósito. E tenho certeza, de que o que me fez aceitar a simplicidade e a subjetividade, deve ter sido começar a ler com o coração tão limpinho. Sem preconceitos.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Homem Na Estrada

Brou tava com o irmão numa estrada de Brasília quando ouviu pela primeira vez aquela música dos Racionais Mc`s, Homem Na Estrada. Ele perguntou ao irmão que dirigia: De quem é essa música? E depois disso o irmão deu uma fita cassete dos Racionais para o Brou que a levou pro Rio. Uma fita dessas que esses otários de hoje em dia não sabem usar. A história é narrada por um preso da época da chacina. Quando Brou chegou a Penha, escreveu toda a letra da música com a ajuda do toca fitas. Ele levara quase dois dias para escrever aquele número enorme de frases. Um amigo mais chegado pediu a letra: qual é Brou, me empresta aí pra eu copiar? Brou emprestou e ele guardou no bolso. Quando Brou foi cobrar a letra, o amigo chamou à mãe a janela e perguntou a ele olhando para a senhora: Brou, aquilo não é uma letra de uma música? E Brou respondeu: sim, por quê? E a mãe logo o cortou dizendo: vocês combinaram isso! Só depois com a família reunida que a sobrinha cantou a música para a tia. Um homem na estrada recomeça a sua vida... Mas aí era tarde. A mãe já havia chorado pensando que o filho era bandido, e que recebia cartas da cadeia. Pois ela havia encontrado uma delas quando foi lavar sua roupa.

domingo, 11 de dezembro de 2011

O Dia Em Que Samuel Nasceu

Samuel nasceu num sábado. E fazia um solzinho desses que teima aparecer. Ele pensa que sábado é melhor que domingo. Pois no domingo a gente só pensa em acordar cedo na segunda-feira. E teve bandinha de música e tudo. Um tio policial militar trouxe a bandinha. Embora Samuel tenha medo de polícia, atualmente. Ele nasceu naquele hospital que fica numa ladeira próxima a sua casa. Samuel não se lembra da enfermeira. Nem do médico ou de como eles eram. E olha que o seu nome é uma homenagem ao médico que o puxou cá pra fora. Mas sempre que sente cheiro de éter e ele vê paredes brancas se lembra do hospital. E diz isso a mãe que responde dizendo: é mesmo... você se lembra do dia em que nasceu? Nossa que menino inteligente!

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Deus Tem Uma Conta No Bradesco

Eu tô travado ali. Olhando a tevê. Não tenho tevê a cabo. E nem tenho gato. Então fico ali. Mas na verdade é só na hora em que eu tô comendo. Porque não consigo assistir televisão. Ela me faz mal. Ainda mais naquela hora em que você acorda com a cabeça fresquinha, e eles começam a informar quem morreu. Televisão de manhã faz mal. Você tem um sono tranqüilo e acorda com toda a desgraça do mundo caindo na tua cabeça. Não dá pra começar o dia assim. E se continuo assistindo, daqui a pouco tô com medo de sair na rua. É uma péssima oração para se começar o dia. Eles não dizem que alguém nasceu feliz da vida. Ou que acontecem coisas legais também. E a exceção para eles é sempre a regra. Mas bater na televisão é bater em cachorro morto. Eu não acho que seja o meio, e sim o que fizeram dele. Igual qualquer coisa na vida. Não tenho nada contra a televisão. Apenas prefiro outras coisas. Se tiver algo que me agrade eu assisto. Igual agora que não consigo me desvencilhar daquele cara. É um pastor. Já tentei assistir outra coisa. Eu pulo os jornais. Num canal tá uma atriz falando de sua vida, e num outro um cantor sertanejo falando de sua vida. E a vida deles é muita chata. Agora o pastor me pede para depositar o dízimo, e mais dez por cento da oferta. Então calculo esse valor de acordo com o salário mínimo, e chego à conclusão de que é muito. Assim como é muito para um livro, um show, ou uma peça de teatro. Aí ele começa a dizer que essa conta é de Deus. Para a obra dele. E eu não consigo parar de rir pensando que Deus tem uma conta no Bradesco.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Músicos e bebida: Mistura Explosiva!

O meu avô era um músico-bêbado. Eu sou um artista-vagabundo. Mas fui intitulado assim contra a minha vontade. Não consegui ser um bêbado. Mas quem sabe algum dia seja promovido. O meu avô era analfabeto. Eu sou semi-analfabeto. O meu avô nunca foi à escola. Eu fui expulso de lá. Ele saia para comprar pão e voltava três dias depois com uma rosa na boca. E a minha avó dizia: eu vou te fazer engolir essa rosa! Eu não tenho coragem de desafiar minha mulher desse jeito. Medo. O meu avô era autodidata. Eu sou também. Sem a mesma eficiência, é claro. Ele ensinava todos os instrumentos para todo mundo. Aquele ouvido do bruto era perfeito. Existe uma lenda de que ele lia partitura, e outra de que era amigo de Mário Reis e Francisco Alves. Não tenho como provar nada disso. Pois a fonte é um filho mais velho e fã. Quando assisti o caminhar mareado de Jack Sparrow, lembrei-me dele. No dia em que meu avô deu uma banana pra gente, eu me sentei com a minha prima gorducha no meio-fio. E a melhor lembrança era aquela em que nos levava para andar por aí. Ele tirava o chapéu para cumprimentar todo mundo. E eu dizia: quando crescer, eu quero ser igual a esse velho! Que ironia, não?

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Corredor Polonês de Crente

De longe ouviu a gritaria. O senhor vai voltar. Acha aquilo estranho, mas continua andando. Vê uma porção de homens de terno e senhoras de vestidos longos. Caixinhas de som, e entrega de folhetinhos. Recebeu um da mão de uma senhora com cara de ralei muito. Numa mesa um bandido estava sentado com todo o produto. E o outro em pé ao lado dele. Não entendeu aquele corredor polonês de crentes na rua da boca. Pó de cinco. Maconha de dois. Era o que o vapor gritava. Da mesma maneira que eles gritam naquelas filmagens de câmera escondida na tevê. E ele disse: maconha de dois. E aí foi jogar o folheto fora, na lata de lixo próxima. O bandido com um boné de NY disse: não faça isso! Não fez. De repente surge um moleque que fazia a contenção no beco e grita: pastor, hoje eu não tô bem, me dá uma luz! O homem de terno põe a mão na cabeça do rapaz. Ele pega a maconha e quando vai sair, o outro moleque diz: qual é? Não pode sair agora não, é falta de respeito, ô! O cara fica por ali e pensa que vai chegar atrasado ao trampo de segurança.

sábado, 26 de novembro de 2011

Plano de Saúde

Não tenho dinheiro. O meu trabalho é uma droga. Ninguém vai com a minha cara. O mundo é uma merda. Eu pensava todas essas coisas. Depressão. Não conseguia me concentrar na formiga subindo a parede. Dor no estômago. É a ansiedade quando sufoca. Então disse a mina: tô ansioso. E ela: vamos ao médico, essa merda mata! Entrei. Clínico geral. Branco. Cabelos grisalhos. Sessentão. Ele me pergunta: senhor, qual é a tua doença? E eu: ansiedade. Ele me olha irritado. Depois diz: tem que ir num psicólogo! Então respirou e refez a pergunta: senhor, o quê está sentindo? Ansiedade. E ele: tira a camisa e deita ali naquela cama. Eu deitei. O homem de branco colocou uns fios em mim. Ele olha um aparelho e conclui: tudo bem. Eu levantei. Ele anotou umas coisas e disse: faz esses exames aqui. Apertou a minha mão, e bom dia. Eu fiquei com cara de ponto de interrogação, esperando que o médico se desculpasse, ou que me pedisse para voltar. A minha ansiedade aumentou. A minha autoestima diminuiu. E acho que na volta para casa me senti pior.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Milícia (Mal de Freixo)

Eu perguntei a ele: o quê você acha do prefeito defender a milícia? O cara falou que elas resolveram o problema da violência em locais em que o governo não chegava. Ele disse: não sei. Acho, eles sinistros. Ele mora num local onde tem milícia. Olha a espuma no copo e acende outro cigarro. Eu pergunto: sinistros, como assim? E ele: teve um dia desses que um moleque de dezesseis anos foi roubar em outro lugar. Quando ele voltou não sei como, mas eles descobriram. Pegaram esse moleque e a namorada de catorze. Espancaram até a morte. Não deram um tiro. Só se ouvia os gritos. Num sei se isso é certo ou não. Os olhos dele brilham. Eu digo: talvez, não.

sábado, 19 de novembro de 2011

Dia 20 de Novembro

Naquela família todo mundo é preto. Eles estão na sala. Uns a favor. Outros contra. Onze pessoas. A tevê ligada na teledramaturgia. O rastafári fala: cara, não há um viado preto com quem se possa conversar nessa merda de país. Só um. Eles não entendem o que eu digo! A prima do meio: mas os negros também não se dão o respeito... Já viu como esses putos entram no ônibus? O tio mais velho: e os índios, cara?! O rastafári explode: eles que se fodam! Eles que cuidem do seu próprio rabo. Todos têm que se defender cara. Os índios, os viados, todo mundo. A prima diz: chamar de viado é preconceito! Ele balança a cabeça como se não entendesse. A tia doutora numa timidez forçada diz: sou contra cotas. Eu estudei em escola pública. O Rasta continua: já falei que não sou contra cota pra pobre. Faça isso e os pretos serão incluídos. Depois que ele diz isso de maneira incisiva, parece que chegam a uma trégua. E por alguns segundos se instala o silêncio. Quando o primo gordinho faz um olhar de riso e interrompe: aí primo, na novela quase não tem preto. O Rasta responde: é, mas tem uma porção deles assistindo! A discussão recomeça. Com a mesma gritaria.

domingo, 13 de novembro de 2011

Bob Marley Desconhecido

Nós andamos uma hora de ônibus. Trinta minutos a pé. Um tempinho para beber água e ir ao banheiro. Ou seja, duas horas. Tudo para ver aquele que para a gente é um herói, e pro  mundo um completo desconhecido. Imagina um fã de reggae conhecer alguém a altura de Bob Marley? era mais ou menos isso. Ele nos recebeu na varanda. Parecia ansioso. Não conseguia se concentrar. O olhar sempre perdido entre a tevê e o que estava dizendo. Num momento lá se levantou para pegar o isqueiro, e  seu amigo disse: ele não tá legal. Briga de família, coisa de dinheiro... troço chato! Não parecia em nada com aquele cara que nós vimos pulando no palco. Era como se a porra de um gênio, tivesse preocupações cotidianas demais. Infelizmente, verdade. Ele havia brigado com os irmãos. Um treco desses. E isso me deixou deprimido. Aquele cara tinha que ficar sentado fazendo música, e não se preocupando com picuinhas. Isso é para gente que não sabe a direção de sua vida. Quando nos levantamos, ele disse: gostei de vocês. Por favor. Voltem novamente. É muito bom conhecer alguém que gosta do que a gente faz. Quando pisamos a calçada, ela me disse: tomara que ele fique bem. E eu completei: tomara. E ela: se pudesse eu pagava esse cara pra ele só fazer música!

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Mas Continuo Doido...

Ele vende carro pra caramba. Tem maior lábia. Não terminou o ginásio, mas lê o jornal O Globo para conversar com os clientes. Já roubou som de carro, fumou e cheirou. Hoje fuma tabaco, toma uma antes do almoço e outra depois do expediente. Batuca Jorge Aragão no volante enquanto fala comigo. Ele se veste bem e comenta do perfume: conhece esse? Antigamente saía fantasiado no Cacique de Ramos. Cumprimenta todo mundo na rua. Toca pandeiro, e joga aquela pelada quinta à noite. Domingo vai com a "preta" e o filho na casa da cunhada, que faz o feijão do jeito que ele gosta. Joga na maquininha, no bicho, tem sorte em tudo, até nas cartas. Além de ser perito na sinuca. De maneira que já vi a rapaziada do morro abandonar a mesa para não jogar com ele; que entre um pagode e outro, diz: larguei a vida doida, mas continuo doido.

sábado, 5 de novembro de 2011

A Invasão

Ninguém morreu na porra daquela invasão, não morreu um moleque lá da área... Um moleque da favela! Nenhum deles. Quando começou o tiroteio todo mundo foi pra casa. Da entoca entra no beco e dá um assobio. Alguém abre a porta. Nós conhece a favela, né? Quem morreu era de fora. Os moleques de outras favelas, que não conheciam o morro, e que ficaram perdidos. Eu vi dois deles... De moto... Os olhos arregalados... Esses eu ajudei a fugir. Mas a maioria morreu. E foi diferente dos números da televisão, é claro. Lá em cima do morro tava cheiro de carniça. De tanta gente morta. Os porcos comeram tudo. Mas tiveram uns que fugiram. Ele solta a fumaça e continua: eu saí tranqüilo. Não olhei nem pra trás. Fui embora.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Poodles

A menina mergulha na lata de lixo. O moleque espera. Deve ter alguma coisa que preste ali. Tudo é lixo naquele lugar. Um cenário de guerra, com homens mutilados e cadeiras de rodas. Ele assiste a cena de dentro do ônibus. Tem uniforme, crachá, carteira assinada, e um tasco de um baseado dentro do bolso. Não dá nem pra dar onda, ele pensa. Blitz. Um policial sobe no lotação. Quando vê o cachimbinho de crack, sujo e enferrujado do moleque, ele diz ao policial: aquele menor tem um cachimbo. O policial responde: não te perguntei nada! Ele se cala. Depois diz: o Brasil não vai melhorar, eu tenho certeza que o Brasil não vai melhorar... Quem disser isso tá mentindo. O Brasil vai explodir e nós vamos morrer aqui dentro. Ele diz isso olhando para os outros passageiros que se assustam. O policial ignora dessa vez. Depois ele se lembra do poodle e fala: eu queria ser uma porcaria de um poodle. Alguém já viu como essas madames cuidam deles? Eles têm até sapatinhos para não pisar no chão. Eu queria ser a droga de um poodle daqueles. O policial diz: você quer calar a porra dessa boca?! Um dos policiais revista a mochila de um homem que subiu naquele ponto, e que vai perder 50 reais daqui a pouco. A menina saiu do lixo e disse para o menino: nada! O motorista dá a partida. E ele diz baixinho... Um poodle... A droga de um poodle!

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Porquês Inúteis

Seu Zé era um velho que tinha um bar com fliper na praça. Todo mundo que jogava ali morreu de tiro. Quando meu pai me pegava lá dentro enchia o meu saquinho. O Seu Zé andava de motinha com as mercadorias amarradas. E ele mesmo dizia: essa mer... cadoria! As vezes eu pagava e dizia: obrigado. E ele: você quer brigar comigo, rapaz?! E no dia em que o moleque disse: esse lugar não tem nada, que lugar amaldiçoado! Ele Respondeu: vira essa boca pra lá, rapaz! O Seu Zé levava as palavras ao pé da letra. E ele é tão presente com o seu cuidado com elas, que eu estava aqui escrevendo, e me lembrei dele ao perceber esse bando de porquês inúteis.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

A Vida Literária

Ele olhou para a tela do computador. Talvez tenha tido um “bloqueio criativo”, como dizem àqueles escritores que nunca tem o que dizer. E o papel que não é papel ou a folha que não é folha, em branco, na tela. E pensou. Pro diabo! Não sou obrigado a escrever essas porcarias... Pegou uma música que não saía da cabeça, e saiu assobiando. Viu a pichação de parede. A sujeira dos garis. A fumaça que os carros soltam com a expiração. Os camelôs repletos de DVDs piratas. A criança com cara e uniforme de escola pública. O solzinho que há dias não dava as caras. E pensou. A vida continua literária.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Como Se Samuel, Fosse Eduardo

Eduardo chamou Samuel. Samuel. Vamos à outra rua? A outra rua é a rua paralela a rua de paralelepípedo em que eles moram. Samuel disse: não. Eduardo disse: tá. Samuel não quis ir não sabe nem por que, se sua mãe nem estava lá. Mas simplesmente não quis brincar. Preferiu assistir desenho. Eduardo atravessou aquele corredor imenso, e cheio de casinhas, que dá para outra rua. A senhora que estava no tanque viu Eduardo passando. Se o corredor estivesse cheio, talvez ele parasse para conversar com as outras crianças. Mas àquela hora estava vazio. Ninguém havia chegado da escola, ainda. O caminhão. Samuel só ouvia falar daquele caminhão. Ele ainda ia ouvir falar muito daquele caminhão, que nunca viu. E talvez crescesse, e o caminhão, quem sabe. A mãe de Samuel ao chegar do trabalho abraçou o filho e beijou de maneira que ele nunca viu. E depois ela o puxou para aquela casinha do corredor ao lado, em que Eduardo vivia com a mãe e o pai. Samuel teve que contar a ida de Eduardo a sua casa mil vezes. E nunca esqueceu a maneira como a mãe de Eduardo o abraço e beijou. Como se Samuel, fosse Eduardo.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

O Meu Blog É Um Deserto

O meu blog é um deserto. Túmulo desértico. Triste como a caatinga. O sertão. O árido e o semiárido. O meu blog é uma solidão. Lotado de textos que ninguém lê. Ou quase, ninguém. Alguns entram aqui por acaso, procurando alguma coisa no Google. E ainda saem irritados, pois a palavra chave é a mesma; mas o assunto, não. Milhares de textos dentro do computador. No armário. Quem sabe obras póstumas pelas mãos de algum parente atencioso. A internet é um universo. E dentro desse universo tem um lugar que é o meu blog. Terra improdutiva. Elefante branco. Numa solidão só. Igual milhões de outros blogs. Sem consolo.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

No Meio do Dilúvio

Ela diz algo para todo mundo na fila. Ninguém dá a mínima para o quê diz. Todo mundo só está preocupado com a própria vida. Tudo é mais importante. O time. A festinha de aniversário do filho. A ração do cachorro. Todo mundo tem com quê se preocupar. De repente dá um trovão e desce uma pancada de chuva do céu. Eu também saio correndo para me abrigar embaixo da marquise. E no meio do dilúvio, a velhinha maltrapilha diz: eu avisei que o meu pai ia pegar vocês...

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Boca-Podre

Ele é barbudo. E treme. Treme sempre que bebe, ou antes, de beber. Mas treme. Os meninos gritam para ele: Boca-Podre! Ele tem os dentes estragados. É magro. E a mãe de olhos fundos, todo o dia faz um tour pelos bares atrás dele. Mas nem sempre foi assim. Dizem que era engenheiro e coisa e tal. Uma tia minha diz: ih, ele era bonito! E o meu tio: a noiva do Boca era um pitéu... Então ele foi derrotado ou desistiu de lutar? Não sei. A história que contam é que ficou assim por causa dessa menina. Uma ingrata que o abandonou na porta da igreja. Assim mesmo. Igual em novela. E o Boca-Podre não soube administrar o vexame perante a comunidade. Mas quando eu o vejo, tento visualizar a cena do Boca chegando do trabalho, e passando na casa da namoradinha para dar um beijo. Mas confesso que é difícil imaginar isso. Muito difícil.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Coisa de Momento

Eu sou soropositivo há vinte e cinco anos. Hoje em dia dá para se viver com AIDS. O governo sabe disso. Mas eles não vão dizer isso na televisão, porque se não vai ter uma porção de maluco que não vai mais usar camisinha. Ele disse. E eu perguntei: Você se arrepende de não ter usado camisinha? E ele: não, cara. O sexo é um momento. É coisa de momento. Naquele momento ali, eu fiz isso.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Homem-Maduro

Ela ficou impressionada com o homem maduro que conheceu na internet. E disse as amigas: é... gente, eu prefiro homens maduros. E não me engano! Até a voz dele no telefone era uma voz madura. Ela cresceu ouvindo dizer que as meninas evoluem mais rápido que os meninos. E se lembra do primeiro namoradinho. Quando disse a ele: para de correr para lá e para cá e se suar. Sem graça, ele parou. E agora foi aquele cara. Mais de trinta anos e morava com a mãe e só andava de bermuda e de calça larga, como se fosse um adolescente. E ainda disse a ela: homem pra vocês é aquele com barriga de chopp no sofá, e três filhos correndo pela casa. Ela ia pensando quando chegou à entrada do shopping. Mas não ficou nada feliz ao ver um menino de dezesseis anos de bochechas rosadas e sorridente, vestindo as roupas do seu homem maduro.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

A Minha Mãe É Babá, Mas Não Pode Ficar Comigo

Samuel espera que a sua mãe venha. Mas ela não vem. Ninguém vem à escola buscar Samuel. Ele fica grudado na grade. A cara de quem olha triste para fora. Quando chega uma prima. E essa prima gordinha tem quase a idade de Samuel. A menina se aproxima da mulher que fica no portão da escola. Hoje a mãe de Samuel não vai poder vir. A mulher responde entediada. Tá. Tudo bem. Samuel olha triste para a prima. Eles vão para a rua e Samuel pensa. A minha mãe é babá, mas não pode ficar comigo. Mas depois que a prima o convida para colar a bunda no papelão e descer no barranco, Samuel admite gostar de quando a mãe não vem.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Uma Perna Branca Ou Um Minuto Na Igreja

Ele colocou a mão em sua perna. Ela disse: que merda é essa! Tá maluco? Pirou?! E ele escorregou a garra para fora daquela brancura. Seu irmão olhava a cena com nojo. Como se dissesse: você é podre! Enquanto ele pensava que talvez aquela porta fosse uma saída de emergência. Ela disse a ele: você ainda é uma criança. Uma criancinha. Não vem que não tem! Ele abaixou a cabeça e ligou o rádio da cozinha. Pôs uma música. Ela disse: tira essa música que esse cantor é um drogado. E você não tem idade para ouvir isso. Ele encostou-se à outra parede. O irmão pensava por que a sua mãe o obrigava a conviver com aquele idiota. Incapaz na escola. Porque tinha que respeitar as mesmas regras de alguém que não conseguia ficar quieto um minuto na igreja. E não fazia nada além de balançar as pernas. Ele disse a ela: eu te amo. Estou apaixonado. Ela disse: ah, é mesmo? Então aproveita para comprar um quilo de batatas pra mim. Pega esse dinheiro que tá em cima da mesa, e traz o troco de volta! Ela continuou na pia descascando a cenoura. O irmão ficou parado próximo a porta sem dizer nada. E ele saiu pensando que estava um dia lindo, e que ia ser um saco ir para a escola outra vez.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Pac-Man

Ele me segurou pela camisa e disse: as pessoas odeiam os seus trabalhos! Disse isso com os olhos em chamas. Ele tava bêbado. Bebe e assiste aos jogos do Flamengo nos bares. Ele me disse: você faz o que quer! Ele é professor de geografia, mas trabalha com informática. Pois dá mais segurança do que dar aula em escola pública para meia dúzia de delinquentes. E ele continuou: eu odeio o meu trabalho. E fico rezando para o tempo passar. Ele conserta computador na casa de velhos militares. Eles dizem: a ditadura era boa. Ele diz: não. Opa. peraí! Começa um discurso e eles se impressionam com a sua elucubração. Ele diz: eu te invejo. Você é forte. Eu digo: também não é assim. Pago o meu preço. Ele me diz: não tem espaço pra gente como você na escola. A sociedade não sabe lidar com gente como você. Ele continua: cara, quando toca o telefone no meu trabalho, eu já fico preocupado. Eu só não quero que interrompam o meu Pac-Man. Só isso que eu não quero. Que interrompam o meu Pac-Man!

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Eu Só Não Quero Voltar Pra Rua

Ele é um homem alto e forte. Com olhos fundos e feições índigenas do Norte do Brasil. A pele tem a cor do cobre. Seria facilmente confundido com um garimpeiro de Serra Pelada. Ele diz: eu só não quero voltar pra a rua. Eu já morei na rua. Tudo bem. Não tinha inimigos. Quando eu acordava escondia o meu cobertor em cima da árvore. Tomava café no posto. Mas sei lá. Não quero morar na rua de novo. E se acabarem com aquele restaurante de um real vão me quebrar. Vai ser mais gasto com supermercado. Aquela comida é feita por nutricionistas. Eu tenho uma vida boa, rapaz! (aqui ele fica exaltado). Tenho uma qualidade de vida excelente. Tem gente que tem dinheiro, mas não tem qualidade de vida. É o que eu converso com a minha assistente social. Todo dia eu malho. A minha glicose está equilibrada. Eu sempre pago o meu quartinho adiantado. Só que se cortarem o meu benefício vou ter que morar na rua de novo. E eu não quero voltar pra rua.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Cenouras Hipócritas Ou Brasileiro Insensível

Vi aquela moeda de um real em cima da mesa. Ela estava solta e separada das outras. Fiquei com pena dela. A gente nunca sabe quando vai precisar de um real. Passa pra cá. Ela deu um pinote pro bolso. Era hora de passear e ela se acomodou ali embaixo da carteira. Na rua da feira um cara me parou: tem um real pra pinga? Gostei da atitude do bruto e arremessei a maliciosa para o ar. Ela girou. Ele estava com a mão aberta. A bicha caiu na palma da mão dele. Parei para comprar legume. Pensava na vida enquanto olhava aquelas cenouras hipócritas. Uma menina parou do meu lado. Tio compra bananada. Balancei a cabeça dizendo que não. Ela insistiu na esperança de me deixar sem graça. Tio compra bananada. Automático disse: não, obrigado. Eu já havia dado a minha reserva para outro tomar cachaça. Ela era uma criança fofinha. Daqui a pouco aparecia alguém disposto a ajudar. O cara da barraca me olhou de cara feia. E disse a ela: toma um real pra ajudar. Eu sou um brasileiro insensível.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Rebuçado

Ele diz: eu fumo para aliviar a minha dor. Eu sinto muito dor. Eu já o ouço dizer isso muito antes dessa moda de fins medicinais, marcha e essa coisa toda. Contemplando o cais fedorento da favela ele diz: eu fiz tanta merda. Roubei. Trafiquei. E não aconteceu nada. Mas fiquei desse jeito de bobeira. Eu tava no ônibus vindo do baile, e veio essa bala de fora. Até hoje não sei quem atirou ou por que. Ele sempre conta essa história entre uma baforada e outra. 

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

O Livro

Eu comprei o livro. O meu irmão mais novo quis ler. E disse a namorada: leia também. A mãe da menina leu o livro nas tardes em que não tinha o quê fazer. Embora fosse um livro adolescente. A menina que agora era ex-namorada do meu irmão, quando se mudou teve que doar os livros para a biblioteca pública por falta de espaço em casa. Um menino que fazia o trabalho de escola tirou o livro da estante. Gostou da capa e do resumo, e fez uma ficha na biblioteca para pegar o livro emprestado. A irmã dele começou a ler o livro. Eu comprei o livro novamente num sebo do centro da cidade.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Tendenciosa

Ela subiu me olhando. Não pude acreditar. Roleta e trocador. Fiquei sem graça. Tentei disfarçar. Uma senhora com setenta anos ou mais. Ela pagou a passagem e eu pensei. É óbvio demais que pare aqui na minha frente. Não teria coragem. Ela irá sentir-se envergonhada. Mas eu tava enganado. No momento em que acabei de tirar a biografia de um dos escritores que mais gosto da mochila, ela encostou. OK. Levantei e dei o lugar. Ela: obrigado. E se ofereceu para segurar a minha bolsa. Grato. Sei que se estivesse em pé, provavelmente ninguém iria segurar nada. Na minha cidade é assim. Mas se ela andasse mais um pouco teria outra pessoa. Qualquer um com menos de sessenta anos daria lugar a ela. Achei a escolha... Tendenciosa. 

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Favela Ocupada

Favela ocupada. Ele tava parado em frente a sua casa. Acabou de fumar. Veio um soldado e disse: pô aí tu num tem um baseado desse pra me arrumar, não? Ele gelou. Mas falou: tenho. Entrou em casa rapidamente. O soldado esperando. Ele suava com medo de que fosse uma armação. Mas se fosse não teria jeito mesmo. Era melhor arriscar. Entrou em casa e pegou um baseado. Deu para o soldado que falou: com todo respeito, sem querer abusar, não tem uma seda aí não, irmão? Tenho. Ele entrou em casa de novo. Saiu com a seda. Deu para o soldado. O soldado falou: valeu... E saiu andando. Ele respirou. Alívio.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

O Apontador Que Caiu No Chão

Eu tenho uma vida desgraçada. Simplesmente não gosto de estudar. E por isso a tia da escola me odeia. O meu pai deu o fora com outra mulher e a minha mãe ameaça tacar fogo na casa. Com meus irmãos e comigo dentro. A mãe de um amiguinho paga a minha caixa escolar e me sinto humilhado por isso e pelas roupas dadas. Odeio essa bolsa de couro velha que não combina com um menino que devia ter uma mochila. Não sei se odeio andar maltrapilho. Acho que não. Odeio mais ser achincalhado. Virar chacota por esse motivo. Não tenho videogame. Lá em casa nós vendemos garrafas para comer ovo. Estou enjoado de ovo.  E de angu também. Naquele quintal só se come angu. Às vezes eu penso. Será que eu vou ser um adulto amargurado? Não. Acho que não. Pois quando eu voei para pegar o apontador que caiu no chão e devolvi a menina, eu me senti o menino mais feliz do mundo. E ainda escrevi um conto curto sobre isso.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

A Beleza Previsível De Cristina Kirchner

Ele sentou no bar e pediu um café. Depois tirou um cigarro e foi para a porta do boteco. Começou a jogar fumaça na cara dos transeuntes. Eu tinha lido todos aqueles livros e o que não me faltava era assunto. Queria falar da importância daquilo tudo. Mas ele ouve essa falácia todo dia. Quando ela chegou, ele disse: hum. E ela: bom dia... Ela era uma mulher no auge dos seus cinquenta anos, com uma beleza previsível e cara de âncora do jornal da noite. Ele foi muito educado. Ela exibiu a mesma classe que tem Cristina kirchner. E num gesto de enfermaria segurou o braço trêmulo do escritor. Eles pararam um táxi. O carro partiu. Eu olhei para as nuvens de cafeína e nicotina que subiam. O preto no balcão olhando minha cara perguntou: você sabe quem ele é? E respondi: eu sei quem ele é. 

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

João Banana

Naquela casa tudo é velho. O ventilador com hélices de alumínio. O vídeo cassete. Os móveis. A tinta das paredes. O fogão enorme. A geladeira. Inclusive o velho gorducho com bochechas rosadas que ouve ópera numa vitrola e apoia os pés num banquinho. E todas as histórias. Ele limpa a garganta e com a sua voz mais áspera diz:
 Antigamente o sujeito entrava num lugar e pedia: me dá uma média com pão e manteiga. Hoje em dia não tem mais isso (o autor discorda). Antigamente o sujeito entrava numa mercearia, pegava um tomate e saia comendo. Hoje em dia não tem mais isso. Antigamente não existia droga. O único cara que fumava maconha aqui era um tal de João Banana. Foi o primeiro maconheiro que vi. Ele ficava dentro do bar, mas só fumava escondido. Hoje em dia está tudo mudado...
Quando disse isso o fiquei imaginado ainda de calças curtas, olhando esse tal de João Banana palitando os dentes  todo de branco parado em frente ao bar, e pensando como ele ia esconder a erva do diabo. Como eles diziam. Antigamente.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Casal Excêntrico

Ele disse: vamos cair fora dessa escola. Ela disse: é mesmo, esses professores não tem nada para nos dizer, talvez lá fora exista algo mais interessante. Ele parou em frente a uma floricultura. O vendedor não viu nada demais nos dois. Ele disse: hei cara, você pode me dar uma flor para a minha gata? O vendedor da floricultura pensou que uma flor não faria falta. E que eles eram um casal tão bonitinho... Pensou igual uma bicha afetada. Logo após eles entraram numa livraria. Os seguranças da livraria que sempre perseguem os negros como se nós negros só roubássemos livros; não deram a mínima para o casal excêntrico de mãos dadas. Eles entraram. Foram as prateleiras. E nada de interessante por lá, também. Apenas clássicos sem fôlego e empolados. Best Sellers. E vencedores de prêmios sem importância. Queriam alguma coisa que os sacudisse. Mas isso está em falta. Quando os dois saíram da livraria, toda a cidade procurava por eles. Os seus rostos estavam nas tevês e nos jornais. Pegos. Na manhã seguinte ele leu com dificuldade o jornal que dizia: menino e menina de seis anos fogem de escola particular mais cara da cidade.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Bad Company

Ele tava no meio dos moleques. Todos eles à-toa e de cabeça raspada. O pai disse: se continuar andando com essa gente. Esse menino vai dar pro quê não presta. E não é que deu. Um tempo depois tava na boquinha da rua de baixo. Era o único limpinho entre os sujinhos. Crackudos. O pai desesperado o mandou para São Paulo morar com a mãe. Ele saia para trabalhar e voltava sempre no mesmo horário. Mas tinha dinheiro demais para um assalariado. Um dia o padrasto desconfiou dele e o seguiu. Ele quebrou para dentro de uma quebrada. Flagrante. Contava um patacão de dinheiro em frente ao boteco. Então a mãe decidiu enviá-lo para morar com a irmã na Alemanha. Ele veio visitar a família um ano depois. Todo mundo feliz. Almoço de domingo. Tudo bem. Quando foi embarcar a polícia federal apareceu. Um quilo da pasta base de cocaína camuflada em fundos falsos.  O pai viu o rosto do filho no Jornal Nacional e vaticinou: são as más companhias.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Vinte Anos De Sua Vida

Ele está com diabetes. Sabe que vai morrer. Outro dia o surpreendi comendo uma lata de marrom glacê. Eu disse a ele: você vai morrer! Tá pensando que não, mas vai morrer! Isso foi quase uma ameaça. Ele não tá nem aí. Tá ficando cego. Caiu no meio da rua recentemente. Eu o levo para apostar nos cavalos. Já bebeu. Já fumou. Já cheirou e comeu tudo que queria. Inclusive mulheres, ele diz. Andou viajando em navios da marinha mercante durante um tempo. E fala: a minha pica é internacional! No que eu digo: agora que você tá ficando cego, todo mundo vai comer o teu rabo! Ele ri e me diz que só não consegue parar com o cigarro. Lamenta. Parei de cheirar, mas não consigo parar de fumar. Ele me olha sério e fala: se piorar, eu meto uma bala na minha fuça. Tem uma no ferro esperando por mim. Não vou dar trabalho pra ninguém. Fui eu mesmo que criei isso, ele conclui. Eu penso que viveu tudo o que podia em vinte anos de sua vida.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Serendipitoso

Quando eu pergunto a ele: E aí, como tá? Ele diz: tudo bem como sempre. O cara já foi preso, e quando conta sobre a cadeia é sempre de maneira engraçada. Mesmo ao falar da surra que o apagou durante dias. Ele passou um tempo na solitária onde deixava a comida azeda para os ratos, e comia o resto para que não cismassem com a sua refeição ou com ele.  Tem pouco mais de trinta anos. Nunca perguntei por que foi preso. Provavelmente por tráfico.  Realmente não acredito que faria mal a alguém se não fosse para se defender. Um dia me disse: eu não sei andar na cidade direito, sempre vivi dentro de favela. Enrola mais um cigarro e fuma tranquilamente sentado num caixote. Tem uma barraca de frutas na feira da favela, e talvez seja a pessoa mais tranquila que conheço. Mora num quartinho minúsculo. Não tem os dentes da frente. E diz: volta aí pra trocar idéia. Não me impressiono com as suas histórias. E sim com o fato de se sentir seguro nesse mundo com quase nada.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Sexta-Feira Felpuda!

De cima da passarela eu vi o sol no final da tarde. Ele estava deslumbrando. Lindo. As pessoas passavam por mim. O trem embaixo. O motoqueiro passou e disse: Cai fora, cara! Tá atrapalhando o trânsito. Fui embora. Não dava para ficar namorando o sol o tempo todo. Ninguém ia entender. E agora de noite vi a lua. Linda. Fez de tudo para ficar visível. Enfurnou-se entre as árvores. Cheia. Felpuda. Sexta-feira. Todo mundo vai sair. Ninguém que trabalha na cidade vai voltar para casa. Eles vão para todos os lugares. O trânsito em direção ao subúrbio vai ficar tranqüilo na Avenida Brasil. Todo mundo vai beber. Fumar. Cheirar. E serão guimbas e mais guimbas de cigarros. Pontas de baseados. Rapas de pó. Dores de cabeça. Ressaca. Camisinhas sujas. Vai ter um mundo de camisinhas sujas em motéis. Muita camisinha. Imagina uma pilha de camisinha. Ele está deitado enquanto ela toma banho. Veja a cena. Ele diz para si mesmo: sou feliz. Quando toca o despertador. Eu desço da passarela.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Tipo Sócrates

Eu tava maior babaca esse dia. Tava caminhando pela imensidão da Avenida Rio Branco. Segunda-feira de manhã. E eu cá com meus botões tive uns achados filosóficos. Tava me sentindo um puta filósofo. Inteligente pra cacete. Tipo Sócrates. Imagina a cena. Um filósofo no meio de boys e secretárias. Aí eu disse: a verdade é que ninguém trabalha para si próprio. Um trabalha para o outro. Será que alguém já teve essa sacada? E emendei com aquelas perguntas básicas. Um questionamento no mínimo adolescente. Por que somos tão “inteligentes”? Por que fazemos música? Quem criou deus? Quando me toquei que nada sei. Burro.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Cidade Das Mulheres

Eu tava chapado. Muito chapado. Caminhando pela cidade e vendo as luzes. Sempre as luzes. Indo em direção ao metrô. De repente observei que estava num mundo cercado de mulheres. Só existiam mulheres no mundo. E eu era o único homem. Assim como naquele filme do cineasta italiano Federico Fellini em que o ator Marcelo Mastroianni acorda num trem e desce numa cidade onde só existem mulheres. Tava eu ali. Mas como é mundo moderno, metrô ao invés de trem. Calculei estar sonhando. Ou sei lá o quê. Uma delas falou algo comigo. A música do Roberto Carlos em meu ouvido não me deixava ouvir. Eu ia tirar o fone. Quando pintou um guardinha no meio da minha história.  De uniforme, cassetete e tudo. Ah, não! É mole? E ele gritou: vagão feminino! Fui. 

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Teto-Preto

Naquele dia faltou água na favela. A criançada tomava banho no chuveirinho. Uma menina gritou: mãe, eu não tô aguentando esse calor... eu vou meter minha cara no balde! Eu disse a ele: qual é cara, não anda com esse violão na capa não, que os caras vão pensar que é fuzil. Ele tirou o violão da capa e falou: você é muito medroso! Nós fomos para debaixo da escada. O Neguinho tava sentado no sofá com um sorriso congelado e no olhar serenidade como se aquele fosse o lugar mais interessante do mundo. Ele alcançou a iluminação. Entrei naquela nuvem de fumaça. Dois moleques chegaram. Um preto e um branco. Tímidos. Ele disse: esse cara fez aquele som que vocês gostam... Conversamos. Ele segredou: os dois maiores 157 da favela. Quando eu vi o Neguinho começando a se encurvar até tombar do sofá. Um bêbado gritou: teto-preto! As pessoas começaram a se aproximar. E aos poucos vieram os gritos. Teto-preto! Teto-preto! Parecia gol do flamengo. Gritando e dançando, todo mundo. 

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Tática Covarde de Guerra

Faz calor. Estou no quarto. O chão é de ladrilho. Deito ali sem camisa. Não adianta. Acordo suado. Boto o ventilador em cima de mim. Ele ri e sopra um ventinho de vez em quando. Um calor dos infernos, eu digo. Não dá para ficar na sala perto da janela; pois é onde bate o sol. As moscas atacam. Moscas do inferno, eu digo. Nesses dias em que estamos lesados pela quentura, elas usam essa tática covarde de guerra. Não dá para ficar em lugar algum. O termômetro zomba da gente marcando quarenta e cinco graus. Ele sabe que a sensação de calor é bem maior que isso. O motorista passa a toalhinha na cara. O cara no elevador diz: tá abafado. A fumacinha sobe do asfalto da Avenida Presidente Vargas. Eu penso que deus deu uns moles. Podia organizar tudo. Chover toda segunda de madrugada para não atrapalhar ninguém. E sem essa de quentura. Fodam-se os eco-chatos e suas teorias. Agora eu só quero matar essa mosca desgraçada que não me deixa escrever.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Cena de Cinema

O menino leva a menina à esquina. Eles acabaram de comer um cachorro quente na praça. É sábado à noite. Os dois caminharam por ruas escuras até lá. Ele tentou beijá-la. Ela virou o rosto. Ela disse: você tá aonde? Ele respondeu: em casa. Ela disse: então vem pra cá. Ele se lembrou dela dizendo: eu te amo, porra! Mas agora ele ouviu: nós não podemos ficar juntos, pois somos muito malucos. Fazer o quê? Ele pensou que o melhor momento que tiveram foi aquele em que ela encostou a cabeça em seu ombro dentro do ônibus. Mas agora eles estão parados na esquina. Ela dá um beijo em seu rosto.  Ele retribui com uma cara de bunda. E já decidiu uma hora antes que nunca mais vai ligar para ela. Que olha para ele com aquela cara triste de quem sabe disso. Os dois se despedem. Futuramente ele vai passar do outro lado da rua e não vai falar com ela. Normal. Eu saio do cinema com os olhos destruídos e vermelhos. Vou ao banheiro lavar o rosto.

terça-feira, 5 de julho de 2011

O Terror Dos Intelectuais!

Ela subiu para o ônibus que eu estava.  Roendo unha. Saia rodada.  Faixa na cabeça. Cara de hippie arrependida. De quem voltou de Woodstock a pé. Eu pensei “ih... essa mina tá por fora do Brasil. Tá por fora. Nem sabe aí. Nem sabe.” O Velho ao meu lado falava sozinho. “eu parei de ir ao Maracanã quando o Zico parou. Num vô mais. Pra quê? só chutão! Só tem chutão pro alto hoje em dia!” Eu percebi que ela me olhava por cima do livro. E quando isso acontecia tinha que evitar o olhar. Só que meu interesse era maior. Ficamos naquele jogo uns vinte minutos. Ela olha. Eu desvio. Ela olha. Eu desvio. Até que vi o nome do livro. Harry Potter. Se não fosse o Harry, seria Crespúsculo, A Cabana ou um Código da Vinci ensebado. Esses são os hits dos ônibus. País que ninguém lê. Que leiam essa porcaria mesmo. Nada de clássico. Nada de Prêmio Jabuti. Feira de Paraty. Eu sou o terror dos intelectuais!

sábado, 2 de julho de 2011

Pagode Meloso

Ele arrumou a casa toda. Posicionou os cigarros que ela gosta estrategicamente. Preparou a comida e pôs o vinho na geladeira. Só lamentou não saber fazer todas aquelas coisas direito. A felicidade subiu da virilha quando ouviu a campainha. Na verdade era o telefone. A voz de taxi-girl do outro lado da linha disse: você me desculpa? Desculpo. Primeiro ele desejou ser uma mulher histérica para dar um chilique. Depois se sentiu uma mulher de malandro. Mas foi o pagode meloso do outro lado da rua que estragou o seu sábado.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Panaceia

O meu pai atravessou a rua. Eu fui atrás dele. Ele não disse nada. Não consegui dizer nada. Ficamos uns bons cinco minutos calados. Séculos. Ansiedade. Eu estava com um bolo confeitado cheio de glacê na garganta. E ia pensando “porque diabos o velho não fala comigo? Preciso que fale!” olhei para os seus olhos e estavam vermelhos. Mas consegui ver uma gotinha que venceu a batalha. Quando ele me disse: cacete... Não se têm muitos shows bons assim nessa porcaria de cidade! Eu disse: é... Esse cara é muito bom! Nunca me esqueci daquele show. Atravessamos a rua e pegamos um ônibus em direção ao subúrbio. As outras pessoas ficaram por ali.

sábado, 25 de junho de 2011

Eu Acho Que Ainda Não Tá Bom

Por uma questão de educação perguntei a esse meu amigo. Você leu o meu blog? Li. Eu sei que ele não gosta das coisas que escrevo. É o tipo que diz: antigamente era melhor. Depois de algum tempo você escreve porque não consegue parar de escrever e já não se importa mais com a opinião dos outros. Ele disse: eu não gosto daquele troço de erro de português e palavrão, parece que tá querendo chocar, porra! Um escritor me disse: você não vai ler o meu livro porque já me conhece. Conheci alguns artistas insuportáveis pessoalmente, e continuei lendo e ouvindo as suas obras. Até aonde o artista é aquilo que faz? Eu penso que o artista e a sua obra se confundem, mas não são iguais. Alguns clichês são sempre válidos. Fico assustado quando sou associado ao que escrevo. Não sou aquilo, mas também sou. Eu ouvi o último disco de fulano de tal que está quarenta anos na música. E posso garantir que com o tempo ele ficou melhor. Embora ainda falem que não superou o primeiro disco. E com um velho escritor acontece o mesmo. No Brasil se enterra a pessoa viva. Ou será que é só a nossa inveja da capacidade do outro. As pessoas próximas são as que menos se importam com o quê quer que eu faça. Não aprenderam a separar a arte do artista. Todo mundo quando conversa comigo se torna especialista em música e literatura. Interrompi meus pensamentos. Ele parou e disse: eu acho que ainda não tá bom. Eu disse: eu também.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

A Cama É Um Lugar Seguro

Você chega a casa. Não há ninguém. Fica de quatro e começa a andar na tua covardia. Do jeito que você consegue. Você engatinha como uma criança que precisa de colo. Não acende a luz, pois não há Luz. Segue no escuro tateando o quê sempre dá uma sensação de insegurança. Nessa casa não há dinheiro. Não há mulher. Não há trabalho. Só as paredes. Você acabou de descobrir que não se pode fazer apenas o que quer fazer e o quê gosta de fazer. O mundo não deixa. E você sente a dor de uma furadeira varar tua barriga. Quer chegar a cama. Só isso que sonha agora. Aquela água salgada descendo dos olhos não te deixa respirar direito. Você consegue alcançar a móvel e se enfurna debaixo do cobertor que te acolhe igual útero. Você treme e se esconde do mundo. A cama agora é um lugar seguro. E você vai ter que ter o dobro de coragem para sair dela amanhã de manhã.

domingo, 19 de junho de 2011

Sem Pau

No dia anterior eu havia desafiado deus. Quem você pensa que é? Desce aqui se tu é homem! Dormi exausto de tanto chorar. No dia seguinte fui cumprir o ritual de mijar ao acordar. E milagre! Não havia nada no lugar do meu pau. Nada. Só um campo liso. Eu me olhei no espelho e pensei “eu sou o homem mais feliz do mundo!” Temi que chegasse o dia em que sentisse vontade de dar o rabo. Balela. O que me fazia sofrer era o excesso de masculinidade e não a ausência dela. Hoje eu penso em quanto tempo perdi tentando enfiar aquele pau em tudo que era buraco. Agora sou mais produtivo, já que nenhuma mulher vai querer um homem sem pau, não tenho que me preocupar com mulher nenhuma. Hoje eu tenho um milhão de amigas. Não tinha uma. E consigo ver beleza na natureza. Nos livros. Nos filmes. Choro no cinema com qualquer comédia romântica. Consigo ver beleza até nas mulheres! Antes eu só enxergava um traseiro e um par de peitos. Atualmente sou muito mais feliz e muito mais livre. Não faço nada para impressionar ninguém. Saio para dançar e conversar com as pessoas. Todos os meus problemas estavam relacionados aquele membro. Hoje eu me sinto leve...  Sem ele ali pendurado.