quinta-feira, 29 de dezembro de 2011
Faroeste Caboclo
Naqueles dias Douglas andava feliz pelo conjunto. E todo mundo
olhava para ele com uma admiração invejosa. Inclusive os moleques que deram uma
trégua nas desavenças. Nem ser o perna de pau da pelada podia embaçar a sua imagem.
E quando se via o moleque em pé na esquina ou e em qualquer calçada estufando o
peito, ninguém pensava que ele fosse metido. Apenas que estava gozando os
louros da fama. Talvez algum desavisado da rua pudesse perguntar: porque que o Douglas
tá tão metido? E nós tivemos que engolir aquela marra dele durante séculos. Mas
até hoje quando fica bêbado ele começa com a mesma ladainha: hei, lembra de
quando eu decorei a letra de Faroeste Caboclo? Hein, lembra? Ele foi o primeiro
maluco a decorar aqueles nove minutos de versos. É como se ele fosse um dos
autores da letra. E ele fala do Renato Russo com uma intimidade que parece um parente
próximo. E no dia da morte do saudoso poeta, ele chorou um Rio Amazonas inteiro.
quinta-feira, 22 de dezembro de 2011
Dostoiévski Vs. Sidney Sheldon
Eu não tinha dinheiro para comprar livros. Nem passagem de ida e
volta para ir a uma biblioteca melhor. Então querendo ou não, aquele era o
acervo que eu tinha disponível. Ainda não tava metido a besta, e não conhecia
nenhum pseudo-intelectual para me dizer quais autores deveriam ser lidos. Então
eu podia ler Dostoiévski num dia e no outro Sidney Sheldon. E na minha cabeça
tudo era literatura e tudo era bom. Livro era livro. Hoje eu talvez não leia o Sheldon
pensando que ele é limitado. E não alimente uma nostalgia obsessiva em relação
a Dostoiévski, por exemplo. Mas tanto o Sheldon quanto o Dostoiévski cumpriram o seu propósito. E tenho certeza, de que o que me fez aceitar a
simplicidade e a subjetividade, deve ter sido começar a ler com o coração tão
limpinho. Sem preconceitos.
quinta-feira, 15 de dezembro de 2011
Homem Na Estrada
Brou tava com o irmão numa estrada de Brasília quando ouviu pela
primeira vez aquela música dos Racionais Mc`s, Homem Na Estrada. Ele perguntou
ao irmão que dirigia: De quem é essa música? E depois disso o irmão deu uma
fita cassete dos Racionais para o Brou que a levou pro Rio. Uma fita dessas que
esses otários de hoje em dia não sabem usar. A história é narrada por um preso
da época da chacina. Quando Brou chegou a Penha, escreveu toda a letra da
música com a ajuda do toca fitas. Ele levara quase dois dias para escrever
aquele número enorme de frases. Um amigo mais chegado pediu a letra: qual é Brou,
me empresta aí pra eu copiar? Brou emprestou e ele guardou no bolso. Quando Brou
foi cobrar a letra, o amigo chamou à mãe a janela e perguntou a ele olhando
para a senhora: Brou, aquilo não é uma letra de uma música? E Brou respondeu:
sim, por quê? E a mãe logo o cortou dizendo: vocês combinaram isso! Só depois
com a família reunida que a sobrinha cantou a música para a tia. Um homem na
estrada recomeça a sua vida... Mas aí era tarde. A mãe já havia chorado
pensando que o filho era bandido, e que recebia cartas da cadeia. Pois ela havia
encontrado uma delas quando foi lavar sua roupa.
domingo, 11 de dezembro de 2011
O Dia Em Que Samuel Nasceu
Samuel nasceu num sábado. E fazia um solzinho desses que teima aparecer. Ele pensa que
sábado é melhor que domingo. Pois no domingo a gente só pensa em acordar cedo
na segunda-feira. E teve bandinha de música e tudo. Um tio policial militar
trouxe a bandinha. Embora Samuel tenha medo de polícia, atualmente. Ele nasceu
naquele hospital que fica numa ladeira próxima a sua casa. Samuel não se lembra
da enfermeira. Nem do médico ou de como eles eram. E olha que o seu nome é uma
homenagem ao médico que o puxou cá pra fora. Mas sempre que sente cheiro de
éter e ele vê paredes brancas se lembra do hospital. E diz isso a mãe que
responde dizendo: é mesmo... você se lembra do dia em que nasceu? Nossa que
menino inteligente!
quinta-feira, 8 de dezembro de 2011
Deus Tem Uma Conta No Bradesco
Eu tô travado ali. Olhando a tevê. Não tenho tevê a cabo. E nem
tenho gato. Então fico ali. Mas na verdade é só na hora em que eu tô comendo. Porque
não consigo assistir televisão. Ela me faz mal. Ainda mais naquela hora em que
você acorda com a cabeça fresquinha, e eles começam a informar quem morreu. Televisão
de manhã faz mal. Você tem um sono tranqüilo e acorda com toda a desgraça do
mundo caindo na tua cabeça. Não dá pra começar o dia assim. E se continuo
assistindo, daqui a pouco tô com medo de sair na rua. É uma péssima oração para
se começar o dia. Eles não dizem que alguém nasceu feliz da vida.
Ou que acontecem coisas legais também. E a exceção para eles é sempre a regra.
Mas bater na televisão é bater em cachorro morto. Eu não acho que seja o meio, e sim o que fizeram dele. Igual qualquer coisa na vida. Não tenho nada contra a
televisão. Apenas prefiro outras coisas. Se tiver algo que me agrade eu
assisto. Igual agora que não consigo me desvencilhar daquele cara. É um pastor.
Já tentei assistir outra coisa. Eu pulo os jornais. Num canal tá uma atriz falando
de sua vida, e num outro um cantor sertanejo falando de sua vida. E a vida
deles é muita chata. Agora o pastor me pede para depositar o dízimo, e mais dez por cento da oferta. Então calculo esse valor de
acordo com o salário mínimo, e chego à conclusão de que é muito. Assim como é muito para um livro, um show, ou uma peça de teatro. Aí ele começa a dizer que essa
conta é de Deus. Para a obra dele. E eu não consigo parar de rir pensando que
Deus tem uma conta no Bradesco.
quinta-feira, 1 de dezembro de 2011
Músicos e bebida: Mistura Explosiva!
O meu avô era um músico-bêbado. Eu sou um artista-vagabundo. Mas
fui intitulado assim contra a minha vontade. Não consegui ser um bêbado. Mas
quem sabe algum dia seja promovido. O meu avô era analfabeto. Eu sou
semi-analfabeto. O meu avô nunca foi à escola. Eu fui expulso de lá. Ele saia
para comprar pão e voltava três dias depois com uma rosa na boca. E a minha avó
dizia: eu vou te fazer engolir essa rosa! Eu não tenho coragem de desafiar minha
mulher desse jeito. Medo. O meu avô era autodidata. Eu sou também. Sem a mesma
eficiência, é claro. Ele ensinava todos os instrumentos para todo mundo. Aquele
ouvido do bruto era perfeito. Existe uma lenda de que ele lia partitura, e outra de que era amigo de Mário Reis e Francisco Alves. Não tenho como provar nada disso. Pois
a fonte é um filho mais velho e fã. Quando assisti o caminhar mareado de Jack
Sparrow, lembrei-me dele. No dia em que meu avô deu uma banana pra gente, eu me
sentei com a minha prima gorducha no meio-fio. E a melhor lembrança era aquela
em que nos levava para andar por aí. Ele tirava o chapéu para cumprimentar todo mundo. E
eu dizia: quando crescer, eu quero ser igual a esse velho! Que ironia, não?
segunda-feira, 28 de novembro de 2011
Corredor Polonês de Crente
De longe ouviu a gritaria. O senhor vai voltar. Acha aquilo
estranho, mas continua andando. Vê uma porção de homens de terno e senhoras de
vestidos longos. Caixinhas de som, e entrega de folhetinhos. Recebeu um da mão
de uma senhora com cara de ralei muito. Numa mesa um bandido estava sentado com
todo o produto. E o outro em pé ao lado dele. Não entendeu aquele corredor
polonês de crentes na rua da boca. Pó de cinco. Maconha de dois. Era o que o
vapor gritava. Da mesma maneira que eles gritam naquelas filmagens de câmera
escondida na tevê. E ele disse: maconha de dois. E aí foi jogar o folheto fora,
na lata de lixo próxima. O bandido com um boné de NY disse: não faça isso! Não
fez. De repente surge um moleque que fazia a contenção no beco e grita: pastor,
hoje eu não tô bem, me dá uma luz! O homem de terno põe a mão na cabeça do
rapaz. Ele pega a maconha e quando vai sair, o outro moleque diz: qual é? Não
pode sair agora não, é falta de respeito, ô! O cara fica por ali e pensa que vai
chegar atrasado ao trampo de segurança.
sábado, 26 de novembro de 2011
Plano de Saúde
Não tenho dinheiro. O meu trabalho é uma droga. Ninguém vai com a minha cara. O mundo é uma merda. Eu pensava todas essas coisas. Depressão. Não conseguia me concentrar na formiga subindo a parede. Dor no estômago. É a ansiedade quando sufoca. Então disse a mina: tô ansioso. E ela: vamos ao médico, essa merda mata! Entrei. Clínico geral. Branco. Cabelos grisalhos. Sessentão. Ele me pergunta: senhor, qual é a tua doença? E eu: ansiedade. Ele me olha irritado. Depois diz: tem que ir num psicólogo! Então respirou e refez a pergunta: senhor, o quê está sentindo? Ansiedade. E ele: tira a camisa e deita ali naquela cama. Eu deitei. O homem de branco colocou uns fios em mim. Ele olha um aparelho e conclui: tudo bem. Eu levantei. Ele anotou umas coisas e disse: faz esses exames aqui. Apertou a minha mão, e bom dia. Eu fiquei com cara de ponto de interrogação, esperando que o médico se desculpasse, ou que me pedisse para voltar. A minha ansiedade aumentou. A minha autoestima diminuiu. E acho que na volta para casa me senti pior.
terça-feira, 22 de novembro de 2011
Milícia (Mal de Freixo)
Eu perguntei a ele: o quê você acha do prefeito defender a milícia? O cara falou
que elas resolveram o problema da violência em locais em que o governo não
chegava. Ele disse: não sei. Acho, eles sinistros. Ele mora num local onde tem
milícia. Olha a espuma no copo e acende outro cigarro. Eu pergunto: sinistros, como
assim? E ele: teve um dia desses que um moleque de dezesseis anos foi roubar em
outro lugar. Quando ele voltou não sei como, mas eles descobriram. Pegaram esse
moleque e a namorada de catorze. Espancaram até a morte. Não deram um tiro. Só
se ouvia os gritos. Num sei se isso é certo ou não. Os olhos dele brilham. Eu
digo: talvez, não.
sábado, 19 de novembro de 2011
Dia 20 de Novembro
Naquela família todo mundo
é preto. Eles estão na sala. Uns a favor. Outros contra. Onze pessoas. A tevê ligada
na teledramaturgia. O rastafári fala: cara, não há um viado preto com quem se
possa conversar nessa merda de país. Só um. Eles não entendem o que eu digo! A prima
do meio: mas os negros também não se dão o respeito... Já viu como esses putos entram
no ônibus? O tio mais velho: e os índios, cara?! O rastafári explode: eles que
se fodam! Eles que cuidem do seu próprio rabo. Todos têm que se defender cara. Os
índios, os viados, todo mundo. A prima diz: chamar de viado é preconceito! Ele balança
a cabeça como se não entendesse. A tia doutora numa timidez forçada diz: sou
contra cotas. Eu estudei em escola pública. O Rasta continua: já falei que não sou
contra cota pra pobre. Faça isso e os pretos serão incluídos. Depois que ele
diz isso de maneira incisiva, parece que chegam a uma trégua. E por alguns
segundos se instala o silêncio. Quando o primo gordinho faz um olhar de riso e interrompe:
aí primo, na novela quase não tem preto. O Rasta responde: é, mas tem uma
porção deles assistindo! A discussão recomeça. Com a mesma gritaria.
domingo, 13 de novembro de 2011
Bob Marley Desconhecido
Nós
andamos uma hora de ônibus. Trinta minutos a pé. Um tempinho para beber água e
ir ao banheiro. Ou seja, duas horas. Tudo para ver aquele que para a gente é um
herói, e pro mundo um completo desconhecido. Imagina um fã de reggae
conhecer alguém a altura de Bob Marley? era mais ou menos isso. Ele nos recebeu
na varanda. Parecia ansioso. Não conseguia se concentrar. O olhar sempre
perdido entre a tevê e o que estava dizendo. Num momento lá se levantou
para pegar o isqueiro, e seu amigo disse: ele não tá legal. Briga de família, coisa
de dinheiro... troço chato! Não parecia em nada com aquele cara que nós vimos pulando no palco. Era como se a porra de um gênio, tivesse preocupações
cotidianas demais. Infelizmente, verdade. Ele havia brigado com os irmãos. Um
treco desses. E isso me deixou deprimido. Aquele cara tinha que ficar sentado fazendo música, e não se preocupando com picuinhas.
Isso é para gente que não sabe a direção de sua vida. Quando nos levantamos, ele
disse: gostei de vocês. Por favor. Voltem novamente. É muito bom
conhecer alguém que gosta do que a gente faz. Quando pisamos a calçada, ela
me disse: tomara que ele fique bem. E eu completei: tomara. E ela: se
pudesse eu pagava esse cara pra ele só fazer música!
sexta-feira, 11 de novembro de 2011
Mas Continuo Doido...
Ele vende carro pra caramba.
Tem maior lábia. Não terminou o ginásio, mas lê o jornal O Globo para conversar
com os clientes. Já roubou som de carro, fumou e cheirou. Hoje fuma tabaco, toma
uma antes do almoço e outra depois do expediente. Batuca Jorge Aragão no
volante enquanto fala comigo. Ele se veste bem e comenta do perfume: conhece
esse? Antigamente saía fantasiado no Cacique de Ramos. Cumprimenta todo mundo
na rua. Toca pandeiro, e joga aquela pelada quinta à noite. Domingo vai com a "preta" e o filho na casa da cunhada, que faz o feijão do jeito que ele gosta.
Joga na maquininha, no bicho, tem sorte em tudo, até nas cartas. Além de ser
perito na sinuca. De maneira que já vi a rapaziada do morro abandonar a mesa
para não jogar com ele; que entre um pagode e outro, diz: larguei a vida doida,
mas continuo doido.
sábado, 5 de novembro de 2011
A Invasão
Ninguém morreu na porra daquela invasão, não morreu um moleque lá da área... Um
moleque da favela! Nenhum deles. Quando começou o tiroteio todo mundo foi pra
casa. Da entoca entra no beco e dá um assobio. Alguém abre a porta. Nós conhece a favela, né? Quem morreu era de fora. Os moleques de outras favelas, que
não conheciam o morro, e que ficaram perdidos. Eu vi dois deles... De moto... Os olhos
arregalados... Esses eu ajudei a fugir. Mas a maioria morreu. E
foi diferente dos números da televisão, é claro. Lá em cima do morro tava
cheiro de carniça. De tanta gente morta. Os porcos comeram tudo. Mas tiveram
uns que fugiram. Ele solta a fumaça e continua: eu saí tranqüilo. Não olhei nem
pra trás. Fui embora.
quarta-feira, 2 de novembro de 2011
Poodles
A menina mergulha na lata de lixo. O moleque espera.
Deve ter alguma coisa que preste ali. Tudo é lixo naquele lugar. Um cenário de
guerra, com homens mutilados e cadeiras de rodas. Ele assiste a cena de dentro
do ônibus. Tem uniforme, crachá, carteira assinada, e um tasco de um baseado
dentro do bolso. Não dá nem pra dar onda, ele pensa. Blitz. Um policial sobe no
lotação. Quando vê o cachimbinho de crack, sujo e enferrujado do moleque, ele diz
ao policial: aquele menor tem um cachimbo. O policial responde: não te
perguntei nada! Ele se cala. Depois diz: o Brasil não vai melhorar, eu tenho
certeza que o Brasil não vai melhorar... Quem disser isso tá mentindo. O Brasil
vai explodir e nós vamos morrer aqui dentro. Ele diz isso olhando para os
outros passageiros que se assustam. O policial ignora dessa vez. Depois ele se
lembra do poodle e fala: eu queria ser uma porcaria de um poodle. Alguém já viu
como essas madames cuidam deles? Eles têm até sapatinhos para não pisar no
chão. Eu queria ser a droga de um poodle daqueles. O policial diz: você quer
calar a porra dessa boca?! Um dos policiais revista a mochila de um homem que
subiu naquele ponto, e que vai perder 50 reais daqui a pouco. A menina saiu do
lixo e disse para o menino: nada! O motorista dá a partida. E ele diz
baixinho... Um poodle... A droga de um poodle!
sexta-feira, 28 de outubro de 2011
Porquês Inúteis
Seu Zé era um velho que tinha um bar com fliper na praça. Todo
mundo que jogava ali morreu de tiro. Quando meu pai me pegava lá dentro enchia o
meu saquinho. O Seu Zé andava de motinha com as mercadorias amarradas. E ele
mesmo dizia: essa mer... cadoria! As vezes eu pagava e dizia: obrigado. E ele:
você quer brigar comigo, rapaz?! E no dia em que o moleque disse: esse lugar
não tem nada, que lugar amaldiçoado! Ele Respondeu: vira essa boca pra lá,
rapaz! O Seu Zé levava as palavras ao pé da letra. E ele é tão presente com o
seu cuidado com elas, que eu estava aqui escrevendo, e me lembrei dele ao
perceber esse bando de porquês inúteis.
sexta-feira, 21 de outubro de 2011
A Vida Literária
Ele olhou para a tela do computador. Talvez tenha tido um “bloqueio
criativo”, como dizem àqueles escritores que nunca tem o que dizer. E o papel
que não é papel ou a folha que não é folha, em branco, na tela. E pensou. Pro diabo!
Não sou obrigado a escrever essas porcarias... Pegou uma música que não saía da
cabeça, e saiu assobiando. Viu a pichação de parede. A sujeira dos garis. A fumaça
que os carros soltam com a expiração. Os camelôs repletos de DVDs piratas. A criança
com cara e uniforme de escola pública. O solzinho que há dias não dava as caras.
E pensou. A vida continua literária.
terça-feira, 18 de outubro de 2011
Como Se Samuel, Fosse Eduardo
Eduardo chamou Samuel. Samuel. Vamos à outra rua? A outra rua é a
rua paralela a rua de paralelepípedo em que eles moram. Samuel disse: não.
Eduardo disse: tá. Samuel não quis ir não sabe nem por que, se sua mãe nem
estava lá. Mas simplesmente não quis brincar. Preferiu assistir desenho.
Eduardo atravessou aquele corredor imenso, e cheio de casinhas, que dá para
outra rua. A senhora que estava no tanque viu Eduardo passando. Se o corredor
estivesse cheio, talvez ele parasse para conversar com as outras crianças. Mas
àquela hora estava vazio. Ninguém havia chegado da escola, ainda. O caminhão.
Samuel só ouvia falar daquele caminhão. Ele ainda ia ouvir falar muito daquele
caminhão, que nunca viu. E talvez crescesse, e o caminhão, quem sabe. A mãe de
Samuel ao chegar do trabalho abraçou o filho e beijou de maneira que ele nunca
viu. E depois ela o puxou para aquela casinha do corredor ao lado, em que
Eduardo vivia com a mãe e o pai. Samuel teve que contar a ida de Eduardo a sua
casa mil vezes. E nunca esqueceu a maneira como a mãe de Eduardo o abraço e
beijou. Como se Samuel, fosse Eduardo.
quarta-feira, 12 de outubro de 2011
O Meu Blog É Um Deserto
O meu blog é um deserto. Túmulo desértico. Triste como a caatinga.
O sertão. O árido e o semiárido. O meu blog é uma solidão. Lotado de textos que
ninguém lê. Ou quase, ninguém. Alguns entram aqui por acaso, procurando alguma
coisa no Google. E ainda saem irritados, pois a palavra chave é a mesma; mas o
assunto, não. Milhares de textos dentro do computador. No armário. Quem sabe
obras póstumas pelas mãos de algum parente atencioso. A internet é um universo.
E dentro desse universo tem um lugar que é o meu blog. Terra improdutiva. Elefante
branco. Numa solidão só. Igual milhões de outros blogs. Sem consolo.
quinta-feira, 6 de outubro de 2011
No Meio do Dilúvio
Ela diz algo para todo mundo na fila. Ninguém dá a mínima para o
quê diz. Todo mundo só está preocupado com a própria vida. Tudo é mais
importante. O time. A festinha de aniversário do filho. A ração do cachorro.
Todo mundo tem com quê se preocupar. De repente dá um trovão e desce uma
pancada de chuva do céu. Eu também saio
correndo para me abrigar embaixo da marquise. E no meio do dilúvio, a velhinha
maltrapilha diz: eu avisei que o meu pai ia pegar vocês...
segunda-feira, 3 de outubro de 2011
Boca-Podre
Ele é barbudo. E treme. Treme sempre que bebe, ou antes, de beber.
Mas treme. Os meninos gritam para ele: Boca-Podre! Ele tem os dentes
estragados. É magro. E a mãe de olhos fundos, todo o dia faz um tour pelos
bares atrás dele. Mas nem sempre foi assim. Dizem que era engenheiro e coisa e
tal. Uma tia minha diz: ih, ele era bonito! E o meu tio: a noiva do Boca era um
pitéu... Então ele foi derrotado ou desistiu de lutar? Não sei. A história que
contam é que ficou assim por causa dessa menina. Uma ingrata que o abandonou na
porta da igreja. Assim mesmo. Igual em novela. E o Boca-Podre não soube
administrar o vexame perante a comunidade. Mas quando eu o vejo, tento
visualizar a cena do Boca chegando do trabalho, e passando na casa da
namoradinha para dar um beijo. Mas confesso que é difícil imaginar isso. Muito
difícil.
quinta-feira, 29 de setembro de 2011
Coisa de Momento
Eu sou soropositivo há vinte e cinco anos. Hoje em dia dá para se
viver com AIDS. O governo sabe disso. Mas eles não vão dizer isso na televisão,
porque se não vai ter uma porção de maluco que não vai mais usar camisinha. Ele
disse. E eu perguntei: Você se arrepende de não
ter usado camisinha? E ele: não, cara. O sexo é um momento. É coisa de momento.
Naquele momento ali, eu fiz isso.
segunda-feira, 26 de setembro de 2011
Homem-Maduro
Ela ficou impressionada com o homem maduro que conheceu na
internet. E disse as amigas: é... gente, eu prefiro homens maduros. E não me
engano! Até a voz dele no telefone era uma voz madura. Ela cresceu ouvindo
dizer que as meninas evoluem mais rápido que os meninos. E se lembra do
primeiro namoradinho. Quando disse a ele: para de correr para lá e para cá e se
suar. Sem graça, ele parou. E agora foi aquele cara. Mais de trinta anos e
morava com a mãe e só andava de bermuda e de calça larga, como se fosse um
adolescente. E ainda disse a ela: homem pra vocês é aquele com barriga de chopp
no sofá, e três filhos correndo pela casa. Ela ia pensando quando chegou à
entrada do shopping. Mas não ficou nada feliz ao ver um menino de dezesseis anos de
bochechas rosadas e sorridente, vestindo as roupas do seu homem maduro.
quinta-feira, 22 de setembro de 2011
A Minha Mãe É Babá, Mas Não Pode Ficar Comigo
Samuel espera que a sua mãe venha. Mas ela não vem. Ninguém vem à escola buscar Samuel. Ele fica grudado na grade. A cara de quem olha triste para fora. Quando chega uma prima. E essa prima gordinha tem quase a idade de Samuel. A menina se aproxima da mulher que fica no portão da escola. Hoje a mãe de Samuel não vai poder vir. A mulher responde entediada. Tá. Tudo bem. Samuel olha triste para a prima. Eles vão para a rua e Samuel pensa. A minha mãe é babá, mas não pode ficar comigo. Mas depois que a prima o convida para colar a bunda no papelão e descer no barranco, Samuel admite gostar de quando a mãe não vem.
segunda-feira, 19 de setembro de 2011
Uma Perna Branca Ou Um Minuto Na Igreja
Ele colocou a mão em sua perna. Ela disse: que merda é essa! Tá maluco? Pirou?! E ele escorregou a garra para fora daquela brancura. Seu irmão olhava a cena com nojo. Como se dissesse: você é podre! Enquanto ele pensava que talvez aquela porta fosse uma saída de emergência. Ela disse a ele: você ainda é uma criança. Uma criancinha. Não vem que não tem! Ele abaixou a cabeça e ligou o rádio da cozinha. Pôs uma música. Ela disse: tira essa música que esse cantor é um drogado. E você não tem idade para ouvir isso. Ele encostou-se à outra parede. O irmão pensava por que a sua mãe o
obrigava a conviver com aquele idiota. Incapaz na escola. Porque tinha que respeitar as mesmas regras de alguém que não conseguia ficar quieto um minuto na igreja. E não fazia nada além de balançar as pernas. Ele disse a ela: eu te amo. Estou apaixonado. Ela disse: ah, é mesmo? Então aproveita para comprar um quilo de batatas pra mim. Pega esse dinheiro que tá em cima da mesa, e traz o troco de volta! Ela continuou na pia descascando a cenoura. O irmão ficou parado próximo a porta sem dizer nada. E ele saiu pensando que estava um dia lindo, e que ia ser um saco ir para a escola outra vez.
quinta-feira, 15 de setembro de 2011
Pac-Man
Ele me segurou pela camisa e disse: as pessoas odeiam os seus trabalhos! Disse isso com os olhos em chamas. Ele tava bêbado. Bebe e assiste aos jogos do Flamengo nos bares. Ele me disse: você faz o que quer! Ele é professor de geografia, mas trabalha com informática. Pois dá mais segurança do que dar aula em escola pública para meia dúzia de delinquentes. E ele continuou: eu odeio o meu trabalho. E fico rezando para o tempo passar. Ele conserta computador na casa de velhos militares. Eles dizem: a ditadura era boa. Ele diz: não. Opa. peraí! Começa um discurso e eles se impressionam com a sua elucubração. Ele diz: eu te invejo. Você é forte. Eu digo: também não é assim. Pago o meu preço. Ele me diz: não tem espaço pra gente como você na escola. A sociedade não sabe lidar com gente como você. Ele continua: cara, quando toca o telefone no meu trabalho, eu já fico preocupado. Eu só não quero que interrompam o meu Pac-Man. Só isso que eu não quero. Que interrompam o meu Pac-Man!
segunda-feira, 12 de setembro de 2011
Eu Só Não Quero Voltar Pra Rua
Ele é um homem alto e forte. Com olhos fundos e feições índigenas
do Norte do Brasil. A pele tem a cor do cobre. Seria facilmente confundido com
um garimpeiro de Serra Pelada. Ele diz: eu só não quero voltar pra a rua. Eu já
morei na rua. Tudo bem. Não tinha inimigos. Quando eu acordava escondia o meu
cobertor em cima da árvore. Tomava café no posto. Mas sei lá. Não quero morar
na rua de novo. E se acabarem com aquele restaurante de um real vão me quebrar.
Vai ser mais gasto com supermercado. Aquela comida é feita por nutricionistas.
Eu tenho uma vida boa, rapaz! (aqui ele fica exaltado). Tenho uma qualidade de
vida excelente. Tem gente que tem dinheiro, mas não tem qualidade de vida. É o
que eu converso com a minha assistente social. Todo dia eu malho. A minha
glicose está equilibrada. Eu sempre pago o meu quartinho adiantado. Só que se
cortarem o meu benefício vou ter que morar na rua de novo. E eu não quero
voltar pra rua.
quinta-feira, 8 de setembro de 2011
Cenouras Hipócritas Ou Brasileiro Insensível
Vi aquela moeda de um real em cima da mesa. Ela estava solta e
separada das outras. Fiquei com pena dela. A gente nunca sabe quando vai precisar
de um real. Passa pra cá. Ela deu um pinote pro bolso. Era hora de passear e
ela se acomodou ali embaixo da carteira. Na rua da feira um cara me parou: tem
um real pra pinga? Gostei da atitude do bruto e arremessei a maliciosa para o
ar. Ela girou. Ele estava com a mão aberta. A bicha caiu na palma da mão dele.
Parei para comprar legume. Pensava na vida enquanto olhava aquelas cenouras
hipócritas. Uma menina parou do meu lado. Tio compra bananada. Balancei a
cabeça dizendo que não. Ela insistiu na esperança de me deixar sem graça. Tio
compra bananada. Automático disse: não, obrigado. Eu já havia dado a minha
reserva para outro tomar cachaça. Ela era uma criança fofinha. Daqui a pouco
aparecia alguém disposto a ajudar. O cara da barraca me olhou de cara feia. E
disse a ela: toma um real pra ajudar. Eu sou um brasileiro insensível.
segunda-feira, 5 de setembro de 2011
Rebuçado
Ele diz: eu fumo para aliviar
a minha dor. Eu sinto muito dor. Eu já o ouço dizer isso muito antes dessa moda
de fins medicinais, marcha e essa coisa toda. Contemplando o cais fedorento da
favela ele diz: eu fiz tanta merda. Roubei. Trafiquei. E não aconteceu nada.
Mas fiquei desse jeito de bobeira. Eu tava no ônibus vindo do baile, e veio
essa bala de fora. Até hoje não sei quem atirou ou por que. Ele sempre conta
essa história entre uma baforada e outra.
sexta-feira, 2 de setembro de 2011
O Livro
Eu comprei o livro. O meu irmão mais novo quis ler. E disse a namorada:
leia também. A mãe da menina leu o livro nas tardes em que não tinha o quê
fazer. Embora fosse um livro adolescente. A menina que agora era ex-namorada do
meu irmão, quando se mudou teve que doar os livros para a biblioteca pública
por falta de espaço em casa. Um menino que fazia o trabalho de escola tirou o
livro da estante. Gostou da capa e do resumo, e fez uma ficha na biblioteca
para pegar o livro emprestado. A irmã dele começou a ler o livro. Eu comprei o
livro novamente num sebo do centro da cidade.
segunda-feira, 29 de agosto de 2011
Tendenciosa
Ela subiu me
olhando. Não pude acreditar. Roleta e trocador. Fiquei sem graça. Tentei
disfarçar. Uma senhora com setenta anos ou mais. Ela pagou a passagem e eu
pensei. É óbvio demais que pare aqui na minha frente. Não teria coragem. Ela
irá sentir-se envergonhada. Mas eu tava enganado. No momento em que acabei de
tirar a biografia de um dos escritores que mais gosto da mochila, ela encostou.
OK. Levantei e dei o lugar. Ela: obrigado. E se ofereceu para segurar a minha
bolsa. Grato. Sei que se estivesse em pé, provavelmente ninguém iria segurar
nada. Na minha cidade é assim. Mas se ela andasse mais um pouco teria outra
pessoa. Qualquer um com menos de sessenta anos daria lugar a ela. Achei a escolha...
Tendenciosa.
quinta-feira, 25 de agosto de 2011
Favela Ocupada
Favela ocupada. Ele tava parado em frente a sua casa. Acabou de fumar. Veio um soldado e disse: pô aí tu num tem um baseado desse pra me arrumar, não? Ele gelou. Mas falou: tenho. Entrou em casa rapidamente. O soldado esperando. Ele suava com medo de que fosse uma armação. Mas se fosse não teria jeito mesmo. Era melhor arriscar. Entrou em casa e pegou um baseado. Deu para o soldado que falou: com todo respeito, sem querer abusar, não tem uma seda aí não, irmão? Tenho. Ele entrou em casa de novo. Saiu com a seda. Deu para o soldado. O soldado falou: valeu... E saiu andando. Ele respirou. Alívio.
segunda-feira, 22 de agosto de 2011
O Apontador Que Caiu No Chão
Eu tenho uma vida desgraçada. Simplesmente não gosto de estudar. E
por isso a tia da escola me odeia. O meu pai deu o fora com outra mulher e a
minha mãe ameaça tacar fogo na casa. Com meus irmãos e comigo dentro. A mãe de
um amiguinho paga a minha caixa escolar e me sinto humilhado por isso e pelas
roupas dadas. Odeio essa bolsa de couro velha que não combina com um menino que
devia ter uma mochila. Não sei se odeio andar maltrapilho. Acho que não. Odeio
mais ser achincalhado. Virar chacota por esse motivo. Não tenho videogame.
Lá em casa nós vendemos garrafas para comer ovo. Estou enjoado de ovo. E de angu também. Naquele quintal só se come
angu. Às vezes eu penso. Será que eu vou ser um adulto amargurado? Não. Acho que não. Pois quando eu voei para pegar o apontador que caiu no chão e devolvi
a menina, eu me senti o menino mais feliz do mundo. E ainda escrevi um conto
curto sobre isso.
quinta-feira, 18 de agosto de 2011
A Beleza Previsível De Cristina Kirchner
Ele sentou no bar e pediu um café. Depois tirou um cigarro e foi para a
porta do boteco. Começou a jogar fumaça na cara dos transeuntes. Eu tinha lido
todos aqueles livros e o que não me faltava era assunto. Queria falar da
importância daquilo tudo. Mas ele ouve essa falácia todo dia. Quando ela
chegou, ele disse: hum. E ela: bom dia... Ela era uma mulher no auge dos seus cinquenta anos, com uma beleza previsível e cara de âncora do jornal da noite.
Ele foi muito educado. Ela exibiu a mesma classe que tem Cristina kirchner. E num gesto de enfermaria segurou
o braço trêmulo do escritor. Eles pararam um táxi. O carro partiu. Eu olhei
para as nuvens de cafeína e nicotina que subiam. O preto no balcão olhando minha
cara perguntou: você sabe quem ele é? E respondi: eu sei quem ele é.
segunda-feira, 15 de agosto de 2011
João Banana
Naquela casa tudo é velho. O
ventilador com hélices de alumínio. O vídeo cassete. Os móveis. A tinta das
paredes. O fogão enorme. A geladeira. Inclusive o velho gorducho com bochechas
rosadas que ouve ópera numa vitrola e apoia os pés num banquinho. E todas as
histórias. Ele limpa a garganta e com a sua voz mais áspera diz:
Antigamente o sujeito entrava num lugar e pedia: me dá uma média com pão e manteiga. Hoje em dia não tem mais isso (o autor discorda). Antigamente o sujeito entrava numa mercearia, pegava um tomate e saia comendo. Hoje em dia não tem mais isso. Antigamente não existia droga. O único cara que fumava maconha aqui era um tal de João Banana. Foi o primeiro maconheiro que vi. Ele ficava dentro do bar, mas só fumava escondido. Hoje em dia está tudo mudado...
Quando disse isso o fiquei imaginado ainda de calças curtas, olhando esse tal de João Banana palitando os dentes todo de branco parado em frente ao bar, e pensando como ele ia esconder a erva do diabo. Como eles diziam. Antigamente.
Antigamente o sujeito entrava num lugar e pedia: me dá uma média com pão e manteiga. Hoje em dia não tem mais isso (o autor discorda). Antigamente o sujeito entrava numa mercearia, pegava um tomate e saia comendo. Hoje em dia não tem mais isso. Antigamente não existia droga. O único cara que fumava maconha aqui era um tal de João Banana. Foi o primeiro maconheiro que vi. Ele ficava dentro do bar, mas só fumava escondido. Hoje em dia está tudo mudado...
Quando disse isso o fiquei imaginado ainda de calças curtas, olhando esse tal de João Banana palitando os dentes todo de branco parado em frente ao bar, e pensando como ele ia esconder a erva do diabo. Como eles diziam. Antigamente.
sexta-feira, 12 de agosto de 2011
Casal Excêntrico
Ele disse: vamos cair fora dessa escola. Ela disse: é mesmo,
esses professores não tem nada para nos dizer, talvez lá fora exista algo mais
interessante. Ele parou em frente a uma floricultura. O vendedor não viu nada
demais nos dois. Ele disse: hei cara, você pode me dar uma flor para a minha
gata? O vendedor da floricultura pensou que uma flor não faria falta. E que
eles eram um casal tão bonitinho... Pensou igual uma bicha afetada. Logo após
eles entraram numa livraria. Os seguranças da livraria que sempre perseguem os
negros como se nós negros só roubássemos livros; não deram a mínima para o
casal excêntrico de mãos dadas. Eles entraram. Foram as prateleiras. E nada de
interessante por lá, também. Apenas clássicos sem fôlego e empolados. Best Sellers.
E vencedores de prêmios sem importância. Queriam alguma coisa que os sacudisse. Mas isso está em falta. Quando os dois saíram da livraria, toda a cidade procurava por eles. Os seus rostos estavam nas tevês e
nos jornais. Pegos. Na manhã seguinte ele leu com dificuldade o jornal que
dizia: menino e menina de seis anos fogem de escola particular mais cara da
cidade.
segunda-feira, 8 de agosto de 2011
Bad Company
Ele tava no meio dos moleques. Todos eles à-toa e de cabeça
raspada. O pai disse: se continuar andando com essa gente. Esse menino vai dar pro
quê não presta. E não é que deu. Um tempo depois tava na boquinha da rua de
baixo. Era o único limpinho entre os sujinhos. Crackudos. O pai desesperado o
mandou para São Paulo morar com a mãe. Ele saia para trabalhar e voltava sempre
no mesmo horário. Mas tinha dinheiro demais para um assalariado. Um dia o padrasto
desconfiou dele e o seguiu. Ele quebrou para dentro de uma quebrada. Flagrante.
Contava um patacão de dinheiro em frente ao boteco. Então a mãe decidiu enviá-lo para morar com a irmã na Alemanha. Ele veio visitar a família um ano
depois. Todo mundo feliz. Almoço de domingo. Tudo bem. Quando foi embarcar a
polícia federal apareceu. Um quilo da pasta base de cocaína camuflada em fundos
falsos. O pai viu o rosto do filho no
Jornal Nacional e vaticinou: são as más companhias.
quinta-feira, 4 de agosto de 2011
Vinte Anos De Sua Vida
Ele está com diabetes. Sabe que vai morrer. Outro dia o surpreendi
comendo uma lata de marrom glacê. Eu disse a ele: você vai morrer! Tá pensando que não, mas vai morrer! Isso foi
quase uma ameaça. Ele não tá nem aí. Tá ficando cego. Caiu no meio da rua
recentemente. Eu o levo para apostar nos cavalos. Já bebeu. Já fumou. Já cheirou
e comeu tudo que queria. Inclusive mulheres, ele diz. Andou viajando em navios
da marinha mercante durante um tempo. E fala: a minha pica é internacional! No
que eu digo: agora que você tá ficando cego, todo mundo vai comer o teu rabo! Ele ri e me diz que só não consegue parar com o cigarro. Lamenta. Parei de cheirar, mas
não consigo parar de fumar. Ele me olha sério e fala: se piorar, eu meto uma
bala na minha fuça. Tem uma no ferro esperando por mim. Não vou dar trabalho
pra ninguém. Fui eu mesmo que criei isso, ele conclui. Eu penso que viveu tudo o
que podia em vinte anos de sua vida.
segunda-feira, 1 de agosto de 2011
Serendipitoso
Quando eu pergunto a ele: E aí, como tá? Ele diz: tudo bem como
sempre. O cara já foi preso, e quando conta sobre a cadeia é sempre de maneira
engraçada. Mesmo ao falar da surra que o apagou durante dias. Ele passou um
tempo na solitária onde deixava a comida azeda para os ratos, e comia o resto
para que não cismassem com a sua refeição ou com ele. Tem pouco mais de trinta anos. Nunca perguntei
por que foi preso. Provavelmente por tráfico.
Realmente não acredito que faria mal a alguém se não fosse para se
defender. Um dia me disse: eu não sei andar na cidade direito, sempre vivi
dentro de favela. Enrola mais um cigarro e fuma tranquilamente sentado num
caixote. Tem uma barraca de frutas na feira da favela, e talvez seja a pessoa
mais tranquila que conheço. Mora num quartinho minúsculo. Não tem os dentes da
frente. E diz: volta aí pra trocar
idéia. Não me impressiono com as suas histórias. E sim com o fato de se sentir seguro nesse mundo com quase nada.
quinta-feira, 28 de julho de 2011
Sexta-Feira Felpuda!
De cima da passarela eu vi o sol no final da tarde. Ele estava
deslumbrando. Lindo. As pessoas passavam por mim. O trem embaixo. O motoqueiro
passou e disse: Cai fora, cara! Tá atrapalhando o trânsito. Fui embora.
Não dava para ficar namorando o sol o tempo todo. Ninguém ia entender. E agora
de noite vi a lua. Linda. Fez de tudo para ficar visível. Enfurnou-se entre as
árvores. Cheia. Felpuda. Sexta-feira. Todo mundo vai sair. Ninguém que trabalha
na cidade vai voltar para casa. Eles vão para todos os lugares. O trânsito em
direção ao subúrbio vai ficar tranqüilo na Avenida Brasil. Todo mundo vai
beber. Fumar. Cheirar. E serão guimbas e mais guimbas de cigarros. Pontas de
baseados. Rapas de pó. Dores de cabeça. Ressaca. Camisinhas sujas. Vai ter um
mundo de camisinhas sujas em motéis. Muita camisinha. Imagina uma pilha de camisinha.
Ele está deitado enquanto ela toma banho. Veja a cena. Ele diz para si mesmo:
sou feliz. Quando toca o despertador. Eu desço da passarela.
segunda-feira, 25 de julho de 2011
Tipo Sócrates
Eu tava maior babaca esse dia. Tava caminhando pela imensidão da
Avenida Rio Branco. Segunda-feira de manhã. E eu cá com meus botões tive uns
achados filosóficos. Tava me sentindo um puta filósofo. Inteligente pra cacete.
Tipo Sócrates. Imagina a cena. Um filósofo no meio de boys e secretárias. Aí eu
disse: a verdade é que ninguém trabalha para si próprio. Um trabalha para o outro. Será
que alguém já teve essa sacada? E emendei com aquelas perguntas básicas. Um
questionamento no mínimo adolescente. Por que somos tão “inteligentes”? Por que
fazemos música? Quem criou deus? Quando me toquei que nada sei.
Burro.
quinta-feira, 21 de julho de 2011
Cidade Das Mulheres
Eu tava chapado. Muito chapado. Caminhando pela cidade e
vendo as luzes. Sempre as luzes. Indo em direção ao metrô. De repente observei que
estava num mundo cercado de mulheres. Só existiam mulheres no mundo. E eu era o
único homem. Assim como naquele filme do cineasta italiano Federico Fellini em
que o ator Marcelo Mastroianni acorda num trem e desce numa cidade onde só
existem mulheres. Tava eu ali. Mas como é mundo moderno, metrô ao invés de
trem. Calculei estar sonhando. Ou sei lá o quê. Uma delas falou algo comigo. A música do Roberto Carlos em meu
ouvido não me deixava ouvir. Eu ia tirar o fone. Quando pintou um guardinha no meio da minha história. De uniforme, cassetete e tudo. Ah, não! É mole? E
ele gritou: vagão feminino! Fui.
segunda-feira, 18 de julho de 2011
Teto-Preto
Naquele dia faltou água na favela. A criançada tomava banho no chuveirinho. Uma menina gritou: mãe, eu não tô aguentando esse calor... eu vou meter minha cara no balde! Eu disse a ele: qual é cara, não anda com esse violão na capa não, que os caras
vão pensar que é fuzil. Ele tirou o violão da capa e falou: você é muito
medroso! Nós fomos para debaixo da escada. O Neguinho tava sentado no sofá com
um sorriso congelado e no olhar serenidade como se aquele fosse o lugar mais
interessante do mundo. Ele alcançou a iluminação. Entrei naquela nuvem de
fumaça. Dois moleques chegaram. Um preto e um branco. Tímidos. Ele disse: esse
cara fez aquele som que vocês gostam... Conversamos. Ele segredou: os dois
maiores 157 da favela. Quando eu vi o Neguinho começando a se encurvar até tombar do sofá. Um bêbado gritou:
teto-preto! As pessoas começaram a se aproximar. E aos poucos vieram os gritos. Teto-preto!
Teto-preto! Parecia gol do flamengo. Gritando e dançando, todo mundo.
quinta-feira, 14 de julho de 2011
Tática Covarde de Guerra
Faz calor. Estou no quarto. O chão é de ladrilho. Deito ali sem
camisa. Não adianta. Acordo suado. Boto o ventilador em cima de mim. Ele ri e
sopra um ventinho de vez em quando. Um calor dos infernos, eu digo. Não dá para
ficar na sala perto da janela; pois é onde bate o sol. As moscas atacam. Moscas
do inferno, eu digo. Nesses dias em que estamos lesados pela quentura,
elas usam essa tática covarde de guerra. Não dá para ficar em lugar algum. O
termômetro zomba da gente marcando quarenta e cinco graus. Ele sabe que a
sensação de calor é bem maior que isso. O motorista passa a toalhinha na cara.
O cara no elevador diz: tá abafado. A fumacinha sobe do asfalto da Avenida
Presidente Vargas. Eu penso que deus deu uns moles. Podia organizar tudo.
Chover toda segunda de madrugada para não atrapalhar ninguém. E sem essa de
quentura. Fodam-se os eco-chatos e suas teorias. Agora eu só quero matar essa
mosca desgraçada que não me deixa escrever.
segunda-feira, 11 de julho de 2011
Cena de Cinema
O menino leva a menina à esquina. Eles acabaram de comer um cachorro quente na praça. É sábado à noite. Os dois caminharam por ruas escuras até lá. Ele tentou beijá-la. Ela virou o rosto. Ela disse: você tá aonde? Ele respondeu: em casa. Ela disse: então vem pra cá. Ele se lembrou dela dizendo: eu te amo, porra! Mas agora ele ouviu: nós não podemos ficar juntos, pois somos muito malucos. Fazer o quê? Ele pensou que o melhor momento que tiveram foi aquele em que ela encostou a cabeça em seu ombro dentro do ônibus. Mas agora eles estão parados na esquina. Ela dá um beijo em seu rosto. Ele retribui com uma cara de bunda. E já decidiu uma hora antes que nunca mais vai ligar para ela. Que olha para ele com aquela cara triste de quem sabe disso. Os dois se despedem. Futuramente ele vai passar do outro lado da rua e não vai falar com ela. Normal. Eu saio do cinema com os olhos destruídos e vermelhos. Vou ao banheiro lavar o rosto.
terça-feira, 5 de julho de 2011
O Terror Dos Intelectuais!
Ela subiu para o ônibus que eu estava.
Roendo unha. Saia rodada. Faixa na
cabeça. Cara de hippie arrependida. De quem voltou de Woodstock a pé. Eu pensei
“ih... essa mina tá por fora do Brasil. Tá por fora. Nem sabe aí. Nem sabe.” O
Velho ao meu lado falava sozinho. “eu parei de ir ao Maracanã quando o Zico
parou. Num vô mais. Pra quê? só chutão! Só tem chutão pro alto hoje
em dia!” Eu percebi que ela me olhava por cima do livro. E quando isso
acontecia tinha que evitar o olhar. Só que meu interesse era maior. Ficamos
naquele jogo uns vinte minutos. Ela olha. Eu desvio. Ela olha. Eu desvio. Até que
vi o nome do livro. Harry Potter. Se não fosse o Harry, seria Crespúsculo, A
Cabana ou um Código da Vinci ensebado. Esses são os hits dos ônibus. País que
ninguém lê. Que leiam essa porcaria mesmo. Nada de clássico. Nada de Prêmio
Jabuti. Feira de Paraty. Eu sou o terror dos intelectuais!
sábado, 2 de julho de 2011
Pagode Meloso
Ele arrumou a casa toda. Posicionou os cigarros que
ela gosta estrategicamente. Preparou a comida e pôs o vinho na geladeira. Só
lamentou não saber fazer todas aquelas coisas direito. A felicidade subiu da
virilha quando ouviu a campainha. Na verdade era o telefone. A voz de taxi-girl
do outro lado da linha disse: você me desculpa? Desculpo. Primeiro ele desejou ser
uma mulher histérica para dar um chilique. Depois se sentiu uma mulher de
malandro. Mas foi o pagode meloso do outro lado da rua que estragou o seu
sábado.
terça-feira, 28 de junho de 2011
Panaceia
O meu pai atravessou a rua. Eu fui atrás dele. Ele não disse nada. Não consegui
dizer nada. Ficamos uns bons cinco minutos calados. Séculos. Ansiedade. Eu estava
com um bolo confeitado cheio de glacê na garganta. E ia pensando “porque diabos
o velho não fala comigo? Preciso que fale!” olhei para os seus olhos e estavam
vermelhos. Mas consegui ver uma gotinha que venceu a batalha. Quando ele me
disse: cacete... Não se têm muitos shows bons assim nessa porcaria de cidade! Eu disse:
é... Esse cara é muito bom! Nunca me esqueci daquele show. Atravessamos a rua e
pegamos um ônibus em direção ao subúrbio. As outras pessoas ficaram por ali.
sábado, 25 de junho de 2011
Eu Acho Que Ainda Não Tá Bom
Por uma questão de educação perguntei a esse meu amigo. Você leu o meu
blog? Li. Eu sei que ele não gosta das coisas que escrevo. É o tipo que diz:
antigamente era melhor. Depois de algum tempo você
escreve porque não consegue parar de escrever e já não se importa mais com a
opinião dos outros. Ele disse: eu não gosto daquele troço de erro de português
e palavrão, parece que tá querendo chocar, porra! Um escritor me disse: você
não vai ler o meu livro porque já me conhece. Conheci alguns artistas
insuportáveis pessoalmente, e continuei lendo e ouvindo as suas obras. Até aonde
o artista é aquilo que faz? Eu penso que o artista e a sua obra se confundem,
mas não são iguais. Alguns clichês são sempre válidos. Fico assustado quando sou
associado ao que escrevo. Não sou aquilo, mas também sou. Eu ouvi o
último disco de fulano de tal que está quarenta anos na música. E posso
garantir que com o tempo ele ficou melhor. Embora ainda falem que não superou o
primeiro disco. E com um velho escritor acontece o mesmo. No Brasil se enterra
a pessoa viva. Ou será que é só a nossa inveja da capacidade do outro. As
pessoas próximas são as que menos se importam com o quê quer que eu faça. Não
aprenderam a separar a arte do artista. Todo mundo quando conversa comigo se
torna especialista em música e literatura. Interrompi meus pensamentos. Ele
parou e disse: eu acho que ainda não tá bom. Eu disse: eu também.
quarta-feira, 22 de junho de 2011
A Cama É Um Lugar Seguro
Você chega a casa. Não há ninguém. Fica de quatro e começa a andar na
tua covardia. Do jeito que você consegue. Você engatinha como uma criança que
precisa de colo. Não acende a luz, pois não há Luz. Segue no escuro tateando o
quê sempre dá uma sensação de insegurança. Nessa casa não há dinheiro. Não há
mulher. Não há trabalho. Só as paredes. Você acabou de descobrir que não se
pode fazer apenas o que quer fazer e o quê gosta de fazer. O mundo não deixa. E
você sente a dor de uma furadeira varar tua barriga. Quer chegar a cama. Só
isso que sonha agora. Aquela água salgada descendo dos olhos não te deixa
respirar direito. Você consegue alcançar a móvel e se enfurna debaixo do
cobertor que te acolhe igual útero. Você treme e se esconde do mundo. A cama
agora é um lugar seguro. E você vai ter que ter o dobro de coragem para sair
dela amanhã de manhã.
domingo, 19 de junho de 2011
Sem Pau
No dia anterior eu havia desafiado deus. Quem você pensa que é? Desce aqui se tu é homem! Dormi exausto de tanto chorar. No dia seguinte fui cumprir o ritual de mijar ao acordar. E milagre! Não havia nada no lugar do meu pau. Nada. Só um campo liso. Eu me olhei no espelho e pensei “eu sou o homem mais feliz do mundo!” Temi que chegasse o dia em que sentisse vontade de dar o rabo. Balela. O que me fazia sofrer era o excesso de masculinidade e não a ausência dela. Hoje eu penso em quanto tempo perdi tentando enfiar aquele pau em tudo que era buraco. Agora sou mais produtivo, já que nenhuma mulher vai querer um homem sem pau, não tenho que me preocupar com mulher nenhuma. Hoje eu tenho um milhão de amigas. Não tinha uma. E consigo ver beleza na natureza. Nos livros. Nos filmes. Choro no cinema com qualquer comédia romântica. Consigo ver beleza até nas mulheres! Antes eu só enxergava um traseiro e um par de peitos. Atualmente sou muito mais feliz e muito mais livre. Não faço nada para impressionar ninguém. Saio para dançar e conversar com as pessoas. Todos os meus problemas estavam relacionados aquele membro. Hoje eu me sinto leve... Sem ele ali pendurado.
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