sábado, 18 de junho de 2011

Cosmética Classe A

Ele tava dançando. Chapado. Saidinho. Afro. Óculos escuros. Dread. Desencanado. Puxa-ferro. Hip-hop. ONG. Revista Raça. Modelo negro. Marcha da maconha. Jay-z no Rock in Rio. Samba de raiz. Comunidade. Não favela. Off-Lázaro Ramos. Cidade de Deus. Periferia. Literatura da periferia. Ponto de cultura. Viaduto de Madureira. Ensino médio completo. Ela adorou aquilo. Amiga. Sorridente. Branquinha. Zona-sul carioca. Maconha e doce. Bossa nova. Naipe de novela do Manoel Carlos. Olhos azuis. Coldplay no Rock in Rio. Samba de raiz. Universidade pública. Antropologia. Morou na Grécia. Garota de Ipanema online. Barzinho em Botafogo. Cosmética classe A. Ele segura o braço da menina. Ela estremece e lembra que adora ir ao subúrbio. Ele sonha acordar em frente à praia e ter água do mar batendo perto da janela. Quando diz: já vai sair? Ela responde: nós vamos ao show no Circo. Circo Voador na Lapa Rio de Janeiro. Show de reggae. Banda Jamaicana das antigas. Rastas igual a ele. Ele pensa que não vai dar. Nem que tivesse carteirinha de estudante. Ele diz: daqui a pouco eu vou... Ela diz: tudo bem. Ele acena. Lá nos falamos. E ela: O.K.  Ele mexe na carteira e tira o dinheiro do ônibus. Dá para beber mais uma cerveja. Mas não vai poder demorar muito, pois amanhã tem que acordar cedo.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

O Homem Cordial

Eu vi quando o cara da moto rapou no retrovisor. Ele disse: foi mal. O policial mandou: foi mal é o caralho! Vocês tão sempre querendo se adiantar! Eu dei um pinote pra dentro do ônibus. O motorista me perguntou: o quê aconteceu ali? Eu respondi: o maluco da moto esbarrou no retrovisor, aí já viu né? Ele disse: esses motoqueiros pensam que são os donos da rua... Rapaz; ainda jogo um pro alto! Neguinho pensa que eu tô brincado, Vai mesmo! Sem muita convicção, eu disse: eles sobem na calçada e tudo, maior vacilação aí! É mesmo, ele concordou. Aproveitado a intimidade perguntei: pô piloto, com todo respeito, tem como quebrar essa? Eu tô na correria, a merreca acabou. Ele olhou para o envelope na minha mão e falou: sobe lá por trás. Quando desci o ônibus acelerou. Eu sabia que aquele negócio de câmera não ia dar certo. Lamentava enquanto assistia o carro se afastar.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

O Menino Do Fundo Da Sala

O menino senta no fundo da sala. Ele sempre olha para fora e pensa na vida desperdiçada com matemáticas e mapas de lugares que não conhece. O menino adora os livros, e põe um deles por cima do caderno para fugir daquela escola. Mas ele continua lá. Mesmo quando o sol é bom. Mesmo quando faz o melhor sol que ele já viu. A professora um dia briga com um, e no outro dia briga com outro, mas ele continua lá. Ele não quer ter a vida que professora diz que é boa. Ele não quer ter a vida do seu pai. Ele não quer ter a vida que dizem que vai ter se não estudar. Ele ainda não sabe qual é a sua vida. Mas ele continua lá.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Mais Um Advogado Merda No Mercado!

Aí ele chegou com a cerveja. A gente embaixo da marquise. Tava um frio do cacete. Um frio que congela a armação dos óculos. Abriu a boca sai fumaça. O brilho dos faróis, dos olhos e da iluminação pública. Ele me disse: cara... Eu terminei a faculdade. Eu disse: Show! Ele tremeu e falou: num sei não. Eu devolvi a pelota. E agora? E ele: mais um advogado merda no mercado! Depois do silêncio voltamos a sentir aquele frio constrangedor.

sábado, 4 de junho de 2011

Ela Não Quer Mais Casar!

Ele me telefonou: já alugou o terno? Sim, então vem correndo pra cá! No caminho eu ia pensando o quanto era bacana que caras legais se dessem bem. O cara buscava a noiva todos os dias na faculdade. Ele saía de onde estivesse para fazer isso. Chapou com ela desde a época da escola. Ficou ligando de tempos em tempos: ainda tá namorando? Sim, então depois te ligo. Até que um dia ela disse “não”. Eles começaram a namorar e agora iam se casar. Eu ia ser o padrinho do casamento e provavelmente do futuro filho deles. Quando cheguei, ele me perguntou: seu terno é legal? Sim, meu terno é legal. E ele: que pena... Pois não vai ter casamento. Ela não quer mais casar! Ele estava tranqüilo. Sem essa de carpideira. Amor é coisa de viado. Homem trepa. Mas eu fiquei com uma vontade imensa de chorar. E só pensava que nunca ia ser padrinho de ninguém. Aquela porção de gente. Aquele dinheiro todo. Sei lá.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

A Crase

Levei meu texto para esse escritor ler. Afundei naquele sofá que me deu uma sensação de desequilíbrio. Escritor novo é foda. Ainda mais com essas novas tecnologias. País que ninguém lê. Pirataria. Filmes 3d. Ele me olhou como se eu fosse um passa fome. Não que eu não seja, mas jogar assim na cara é foda, né? Depois mudou a posição das pernas, tirou os óculos e disse: você só fala do teu bairro. E eu: é... Eu só falo do meu bairro. E pensei que nunca viajei de avião e queria viajar de avião. E que não conheço ricos depressivos ou policiais em crise. Ele me disse: gostei do teu livro, você escreve bem. “Eu escrevo bem”, pensei. Mas tem que melhorar o português, o texto está cheio de erros, sobretudo a crase, falou num muxoxo. Ele estava preocupado com a crase.

sábado, 28 de maio de 2011

Canastra

Repartição pública. A loura chega. Cabelos curtos. Tatuagem nas costas. Cara de mulher fatal. Gostosinha. Ela dá um beijo no rosto daquele preto, magro e boa pinta com cara de falador. Eu penso. Canastra. Todo mundo percebe que a loura ignora os outros colegas de trabalho. Ponto. Outro dia. O preto grita meu nome. Eu levanto o dedo. Ele diz: chega mais! Eu sento em frente a ele que me diz: vocês adoram dar trabalho pra gente! Quando ele diz “vocês”, se refere a esse bando que sonha com o café que está na mesa da atendente. Entra uma menina em cena. Bonitinha. Nada demais. Cara de igreja. Se casar vai trepar uma vez por semana depois da novela. Estagiária. Ele diz: é ruim ficar em pé, né? E ela: é, é ruim. Na seqüência ele pergunta: o quê você vai aprontar fim de semana? Ela diz: nada, eu não tenho dinheiro, chego cansada... E ele diz: eu também não tenho dinheiro, não... Eu penso. Canastra.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Idade Avançada

Ela olhou para o moleque e não acreditou. Perguntou apenas: qual é a tua idade, moleque? Ele disse: quinze anos. E jogou os olhos para baixo que é como esses moleques sempre fazem. Ela disse: você sabia que eu tenho idade para ser a tua avó? E ele bufou como quem acha a pergunta desnecessária. E ela disse: por que você não procurou uma mulher mais nova? Silêncio. Mas ela falou: tudo bem, eu tô precisando de dinheiro mesmo! E ele ansiosamente perguntou: qual é a tua idade? E ela: eu tenho idade avançada!

terça-feira, 24 de maio de 2011

Respirando De Canudinho

Ela entrou no elevador. Ela não ia falar com ele. Não mais. Ele pensou que o ascensorista talvez estivesse pensando que eles não se conheciam, e em como a vida de ascensorista é chata. O dia todo: Sobe. Desce. Essa profissão devia ser banida por subestimar a inteligência do ser humano. Ela se comportou como mulher e aguentou bem a pressão fingindo não o conhecer. Ainda brincou com a bola como fazem os craques, se olhou no espelho e viu como estava o cabelo. Ele estava respirando por canudinho, e tinha vontade de bater, xingar, gritar, esganar a filha da puta. Quando o elevador chegou ao andar, ela saiu tranquilamente mexendo na bolsa. Ele foi para o corredor lateral e deu aquele respiro de alívio que quase derrubou o prédio.

sábado, 21 de maio de 2011

Acabou a Televisão de Cachorro

O Moleque falou para a Menina: esses programas de tevê são legais. A Menina disse: você gosta? O Moleque respondeu: gosto. E a Menina: mas do quê que você gosta? E ele: das comidas que essa loura faz. E a Menina respondeu: essa loura é legal, né? E ele: pode crê Loura maior legal aí, Loura legal de monte! A tevê era dessas que ocupam uma parede inteira da sala e que deixam as pessoas pequenas em sua frente. Quando surgiu um homem com cara de pai do fundo da loja e meteu a mão no botão. O homem disse: acabou a televisão de cachorro, circulando, circulando... O Moleque falou: vamos tentar arrumar algum dinheiro. E a Menina: eu quero comer alguma coisa. Eles saíram aspirando a substância que os levava para o mundo em 6d. E mesmo fazendo calor eles têm que carregar seus cobertores.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

O Cara Magro de Cabeça Raspada

Eu tava com medo de ficar com eles na praça, aí o Cara Magro disse: cara eu não tô fazendo nada de errado, se ligou? A gente não tá fazendo nada de errado, a gente paga imposto, se ficar se escondendo é pior. Os outros dois não deram a mínima para o quê ele disse e continuaram com aquele assunto sem importância. Nós íamos andando em direção ao ponto de ônibus. Quando o busão chegou, eu paguei a minha passagem e fui me sentar atrás. Mania. E o Cara Magro de Cabeça Raspada falou: cara porque você tá indo para o fundo? Vocês sempre vão para o fundo, vamos sentar aqui na frente, senta aqui na frente, tem lugar aqui, isso me agride... Isso é agressivo, cara! Os outros dois olharam para ele como se fosse maluco, mas sentaram e deram um gás no papo. Eu fiquei sem graça e me sentei na frente. Os outros passageiros ficaram nos olhando sem entender nada.

domingo, 15 de maio de 2011

O Dia do Livro

No dia seguinte ia rolar o dia do livro e eu estava tão ansioso que não consegui dormir e saí catando livros pela cidade. Sempre que está próximo ao dia do livro os sebos e as livrarias fazem isso, aumentam o preço dos livros. A cidade fica intransitável. Todo mundo sai às ruas para comprar livros. Isso gera engarrafamentos e quem tem carro não encontra lugar para estacionar. Ninguém consegue andar nas calçadas. Os bandidos começam a roubar nos pontos de ônibus e dentro deles também. A minha tática era sair com um aspecto miserável e colocar tudo dentro de caixas velhas de papelão e ficar parecendo um mendigo andarilho, um louco qualquer, que é o quê eu realmente não sou. Passei o dia todo suando e dizendo: hei, me ajuda aqui! No dia do livro as pessoas ficam mais felizes. Eu olho para os seus semblantes e elas estão mais leves e é essa mesma leveza que elas têm nas filas de cinema sábado à noite. As que freqüentam cinema é claro. Todo mundo prepara a ceia durante horas e quando dá meia noite pipocam os fogos. Eu fui dormir tarde, mas acordei cedo e sai. O dia amanheceu com sol, esse ano não choveu como previsto. Um senhor que estava com a casa aberta me chamou. Fui logo olhando os livros e vi um que procurava entre os outros na sala, e ansioso disse: eu tenho esses aqui. Ele chamou a menina pretinha de coque na cabeça e disse: aqui minha filha, aquela série que você gosta! Os olhos da menina brilharam. E os meus também.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Barrado na Academia Brasileira de Letras

Um almofadinha desses que apresentam jornal na hora do almoço me disse que ia rolar um debate sobre funk e hip-hop na ABL. Como eu estava indo para o centro da cidade resolvi dar uma passada por lá. Chegando ao local nenhum conhecido, e sim uma porção de crianças com camisas da maior ONG de hip-hop do Brasil. E pretos seguranças de terno preto. Entrei ressabiado, pois tenho medo de locais chiques. É uma coisa que nós pretos suburbanos latino-americanos temos, apesar das campanhas pela auto-estima. Um DJ conhecido meu acenou para que eu chegasse mais. E aquele papo de sempre: e aí como é que tá o rap? Legal tá indo bem. Quando o chamaram para retomar o trabalho fiquei só e frustrado no meio daquelas crianças. Resolvi que não ficaria por ali, pois não havia nem sinal de que o debate fosse começar. Avistei uma porção de jovens brancos e legais desses que lidam com a cultura e fui para o meio deles, pois estava realmente constrangido de ser o único adulto próximo aquelas crianças. Quando o segurança preto percebeu que eu estava perto da rapaziada sem crachá, ele veio até a mim e me perguntou: você é da ONG? Eu disse: não. E ele: então o senhor não pode ficar aqui. E eu disse a ele: então eu vou embora! Engraçado que eu fui barrado na ABL não pelo meu péssimo português e sim pela cor do meu texto. Quem sabe se eu usasse outra fonte...

domingo, 1 de maio de 2011

Bullying

Enquanto ele caminha para a escola em que estudou, ainda vê as fezes nas lentes dos óculos, escuta a gritaria de alegria no banheiro e sente a água da privada batendo em sua cara. Ele ainda escuta as risadas de quando aquele menino preto entrou com uma peruca loura na quadra. O menino estava vestido igual à menina que havia marcado com ele. O rapaz ainda lembra como ficou preso na lata de lixo em que foi jogado. Ele não falava nada na escola. Ninguém falava nada com ele. Ele não tinha amigos. Ele não tinha namorada. Às vezes sumia por um ou dois dias e quando voltava se sentava no mesmo lugar. Um menino gordo tentou se aproximar uma vez, mas como não obteve resposta, desistiu, pois ele havia olhado desconfiado como se o gordo quisesse debochar dele. Uma vez no corredor ouviu uma menina dizer: deve ser viado! O médico disse: ele apresenta um quadro normal. O sacerdote na tevê: deus tem um propósito pra tua vida! E o herói na televisão: eu não descanso enquanto não vingar a morte da minha mulher! E uma vizinha que o assistia passar todo dia para comprar refrigerante: moleque esquisito, não fala com ninguém! No trabalho ele era calado e prestativo como diriam os colegas. O sobrinho disse que o tio era estranho e que quando ia a sua casa passava a maior parte do tempo na internet. Dentro da escola um homem do governo e de terno dava entrevista dizendo que a solução era diminuir o tráfico de armas. Do lado de fora um vizinho respondia ao repórter: ele era um cara normal. Normal.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Ondas Gigantes

Era um cenário de filme pós-apolítico. Eu me lembrei do Mad-Max. O mundo era obscuro. A cidade quase vazia. Eu me encontrava dentro da carcaça de um ônibus embaixo de uma ponte. Dali avistei a rua alagada, era o dilúvio. Uma banca de jornal virada. Pelo canto do olho, eu vi surgir uma grupo de seres iguais aqueles zumbis de Eu Sou a Lenda. Eles estavam com cajados dentro da água. Não sabia se iam atacar. Próximo a eles também um ser mutante. Esse ser era um homem-mulher, talvez tivesse três seios, e carregava um pequeno ser. Uma espécie de profeta do novo mundo, imerso, gritava sobre nosso fracasso e os castigos de deus. De outro ônibus que servia como uma espécie de tenda para outras pessoas, um grupo atiçava e debatia com esse profeta. Quando resolvi ampliar minha visão, acordei e vi que estava em São Cristóvão na Rua Bela, num ônibus parado numa enchente. Um bêbado discutia com o pessoal do ônibus ao lado. Uns crackudos com pedaços de madeira tentavam encontrar alguma coisa de valor no meio de toda sujeira. Um travesti passava com uma criança no colo. E duas senhoras com os corpos cobertos davam um discurso: deus vigia, mas nós temos que acreditar! Quando um preto com uniforme da COMLURB disse: nós só vamos sair daqui amanhã de manhã. Uma das senhoras gritou: vira essa boca pra lá, um anjo de deus vai fazer descer essa água e tirar a gente daqui. O anjo de deus devia estar um pouco atarefado, pois a água só desceu quatro horas da manhã.

domingo, 24 de abril de 2011

Spray de Pimenta

Ele sabia que não era com ele, mas mesmo assim olhou para trás, a velha mania de pensar que todo mundo na rua quer falar com a gente. Ou quando toca o telefone. Interfone. O jato de espuma foi certeiro na cara. Era carnaval. Todo mundo riu e ele ficou sem graça. Naquele bloco ninguém dançava ou cantava, a praça foi tomada por uma guerra de espuma. Mas aquela cena o lembrou da manifestação no centro da cidade. Ele não gostava de estudar, e não pagava passagem, pois morava perto da escola. Então estava cagando para tudo aquilo. Mas cedeu para não ter que aturar a aporrinhação dos colegas. E de lá eles iriam para o shopping que era melhor que matar aula só e ficar sem nada para fazer. O quê ele pensa desse tipo de coisa? Ele pensa que a maioria da população prefere morrer de fome a fazer alguma coisa. Então que se danem! Ele divagava que não tinha nada contra aqueles guardas do cordão de isolamento, quando a bomba de efeito moral explodiu o deixando sem moral nenhuma. Azucrinado ele pensou: “Não tenho experiência em guerras, meu deus, mas se uma guerra for assim eu tô fora!” Quando conseguiu recobrar os sentidos falou para si: “Está tudo bem, agora eu vou embora”. O guarda veio por trás e zás! Espirrou gás-pimenta em seu rosto. Hoje seu apelido é Coquetel Molotov.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Pressão Psicológica

O menino me olha da mesa ao lado. Ele pensa que eu olho para a garota. Igual um palestrante nervoso ele não sabe o quê fazer com as mãos. A menina parece ter mais experiência. Ela olha para os lados e finge prestar atenção em algo que tem muita importância e que talvez vá dar assunto. Eu sei que é mentira e que aquela cena daquele velhinho tentando pôr a neta nos ombros não tem tanta importância assim. O menino veste o macho que defende o seu território e fica me encarando, mas ao mesmo tempo tem que se preocupar com o quê dizer a menina. Os olhares dos dois são sempre perdidos, para cima, para baixo e para o lado. Eu sinto que estou atrapalhando o fluxo de pensamentos dele. A menina não me percebe ou pouco se importa comigo, pois sei que estou ao seu lado no campo de visão. Ele de novo me encara e eu o encaro profundamente como quem diz: não dou a mínima para você. Eu quero é saber como ele vai sair dessa. Ela está à espera do que ele vai dizer se é que ele vai dizer alguma coisa. Ele entrega os pontos. Fica de pé e diz a ela: vamos dar uma volta. E me olha como quem diz: você venceu.

domingo, 17 de abril de 2011

A Estreia

Aquele segurança de boate me surpreendeu. O ambiente ficou com cara de área nobre. Eu estava curioso igual às crianças que foram levadas para lá por algumas professoras e para quem aquela porta era de chumbo. Os professores que moravam no bairro também estavam lá, e alguns malucos que ouviam música e fumavam erva. A minha preocupação na fila era: “Será que tem sofá aí dentro?” O negão que era o segurança me tranquilizou: “Tem. Tem sofá aí dentro.” E eu: “Show de bola!” E ele: “E vai ter café e água gelada, senhor.” E eu: “Massa!” De repente chegou um coroa de terno acompanhado de uma menina loura e magra de óculos que estava vestida como se fosse uma aeromoça. O Homem parecia ser o chefe de todo mundo. Eu me afastei intimidado e não ouvi o quê ele disse. Mas no final da embromação ele cortou a fita. Todo mundo como numa promoção de eletrodomésticos. Eu não acreditei naquele mundo de livros na estante. Era a primeira livraria decente entre muitos bairros do subúrbio. Eu não sabia por onde começar, não ia comprar nenhum daqueles livros, mas ia ler boa parte deles ali dentro.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Ele Era Divino!

Ele subiu cambaleando no mesmo ônibus que eu estava e sentou na escada para não pagar passagem. O motorista não pôde ver. Eu o reconheci logo, o cabelo grisalho, a barba mal feita e a camisa de botão aberta. Eu não teria coragem de falar com ele em outra ocasião, pois tem fama de mal-humorado. Mas ele estava tão bêbado que resolvi arriscar e disse: o meu pai conhece o senhor e... E ele disse: eu não me lembro de ninguém! Um tempo depois ele morreu de tanto beber. Mas dizem que antes de morrer comeu uma mulher mais nova que ele, e dizem que também fez algum dinheiro participando de um show de uma pagodeira famosa. Ele morreu na merda igual aqueles pintores antigos que morreram na merda e hoje em dia são nomes de serviços de banco, ou aqueles compositores para quem o pessoal do municipal cruza as pernas entre um bocejo e outro. A família dele mora na mesma casinha do subúrbio. Mas agora quando ele foi homenageado por sua escola de samba e sua obra virou tese em universidade e ele é cantado por sambistas que participaram da revitalização da Lapa, a madrinha da bateria que é atriz-modelo diz assim: ele era divino! Eu concordo que ele era divino!

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Roda Gigante

A escada que leva a Roda Gigante é enorme. A Roda Gigante é gigantesca. O meu pai diz: “Quando você crescer não vai achar a Roda Gigante tão grande assim.” Eu sinto que vou continuar vendo esta a Roda Gigante como imensa. A menina me olha da Roda Gigante. A Roda Gigante demora muito para dar uma volta completa. Eu quero que ela veja o quanto sou forte e como suporto bem todas essas voltas. Os meninos que conseguem suportar um giro da Roda Gigante sempre são recompensados com sorrisos e doces. Os olhos enormes da menina me acompanham do céu e ela tem um bocão com dentes grandes e brancos. Eu não estou aguentando e sinto vontade de vomitar as minhas tripas. O meu pai me pergunta: “Você é um homem ou é um bolinho de carne?” Eu quero dizer: "Eu sou um bolinho de carne!" Mas ele não vai entender. Quando a Roda Gigante chega ao cume eu sinto vontade de desistir. Enquanto penso isto, vejo a Roda Gigante chegar ao chão e me surpreendo por ter conseguido resistir. A mãe da menina a espera com os óculos na mão. Ela me olha com seus olhos estrábicos e me dá um sorriso. Ela põe os óculos e vai embora puxada por sua mãe.

Sujeito-Homem

O PM desceu do carro dizendo: eu vou perguntar só uma vez e não adianta mentir porque se eu encontrar vai ser pior, vamos lá, tem flagrante? Não, não tenho flagrante, o cara respondeu. O PM olhou desconfiado e disse: usou droga? Usei, ele falou tranquilamente. O PM mais uma vez: cheirou pó ou fumou maconha? E o cara: fumei maconha. Não cheirou pó? O PM insistiu. Não, não cheirei pó. O PM concluiu: isso é sujeito-homem! Vai lá, se adianta! E o cara continuou descendo a ladeira que dava para uma ruazinha do morro.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

A Menina Magra e Loura de Cabelo Encardido

00h00min cheguei à fila que dava a volta no quarteirão. uma senhora de guarda-chuva e cabelos grisalhos disse: “Todo ano é esta palhaçada!”, “É mesmo...” respondi para dizer algo. 01h10min dois moleques pularam o muro de uma fábrica para pegarem goiabas. 01h15min eles voltaram da missão e a menina magra e loura de cabelo encardido disse: “Isso é coisa de pobre mesmo!” 01h40min as pessoas começaram a socializar em pequenos grupos que formavam uma célula maior. 02h04min passou uma travesti e um moleque foi atrás dela: “Vem cá boneca...” A travesti disse: “Boneca é o caralho!” Todo mundo riu. 03h30min a mãe da menina magra e loura de cabelo encardido disse: “Você não lava nem as tuas calcinhas e ainda quer que eu lave as cuecas do seu namorado!” Esta discussão durou mais ou menos uns quarenta e cinco minutos e todo mundo ria enquanto elas contavam os podres uma da outra. 04h28min comecei a sentir sono. 05h03min eu soube que o atendimento só iria começar às sete horas da manhã. 06h00 as pessoas desenvolveram uma espécie de amizade, e tranquilas cotizaram um lanche de padaria. 06h25 uma repórter de televisão chegou, ela estava de cabelo molhado, banho tomado, limpa, bem alimentada, e disse: “Eu vou entrevistar vocês, mas preciso que chorem e digam como é ruim ficar aqui.” Quando ela ligou o microfone a mãe da menina magra e loura de cabelo encardido começou a chorar e a falar: “É uma covardia o que fazem com a gente!