segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Rebuçado

Ele diz: eu fumo para aliviar a minha dor. Eu sinto muito dor. Eu já o ouço dizer isso muito antes dessa moda de fins medicinais, marcha e essa coisa toda. Contemplando o cais fedorento da favela ele diz: eu fiz tanta merda. Roubei. Trafiquei. E não aconteceu nada. Mas fiquei desse jeito de bobeira. Eu tava no ônibus vindo do baile, e veio essa bala de fora. Até hoje não sei quem atirou ou por que. Ele sempre conta essa história entre uma baforada e outra. 

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

O Livro

Eu comprei o livro. O meu irmão mais novo quis ler. E disse a namorada: leia também. A mãe da menina leu o livro nas tardes em que não tinha o quê fazer. Embora fosse um livro adolescente. A menina que agora era ex-namorada do meu irmão, quando se mudou teve que doar os livros para a biblioteca pública por falta de espaço em casa. Um menino que fazia o trabalho de escola tirou o livro da estante. Gostou da capa e do resumo, e fez uma ficha na biblioteca para pegar o livro emprestado. A irmã dele começou a ler o livro. Eu comprei o livro novamente num sebo do centro da cidade.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Tendenciosa

Ela subiu me olhando. Não pude acreditar. Roleta e trocador. Fiquei sem graça. Tentei disfarçar. Uma senhora com setenta anos ou mais. Ela pagou a passagem e eu pensei. É óbvio demais que pare aqui na minha frente. Não teria coragem. Ela irá sentir-se envergonhada. Mas eu tava enganado. No momento em que acabei de tirar a biografia de um dos escritores que mais gosto da mochila, ela encostou. OK. Levantei e dei o lugar. Ela: obrigado. E se ofereceu para segurar a minha bolsa. Grato. Sei que se estivesse em pé, provavelmente ninguém iria segurar nada. Na minha cidade é assim. Mas se ela andasse mais um pouco teria outra pessoa. Qualquer um com menos de sessenta anos daria lugar a ela. Achei a escolha... Tendenciosa. 

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Favela Ocupada

Favela ocupada. Ele tava parado em frente a sua casa. Acabou de fumar. Veio um soldado e disse: pô aí tu num tem um baseado desse pra me arrumar, não? Ele gelou. Mas falou: tenho. Entrou em casa rapidamente. O soldado esperando. Ele suava com medo de que fosse uma armação. Mas se fosse não teria jeito mesmo. Era melhor arriscar. Entrou em casa e pegou um baseado. Deu para o soldado que falou: com todo respeito, sem querer abusar, não tem uma seda aí não, irmão? Tenho. Ele entrou em casa de novo. Saiu com a seda. Deu para o soldado. O soldado falou: valeu... E saiu andando. Ele respirou. Alívio.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

O Apontador Que Caiu No Chão

Eu tenho uma vida desgraçada. Simplesmente não gosto de estudar. E por isso a tia da escola me odeia. O meu pai deu o fora com outra mulher e a minha mãe ameaça tacar fogo na casa. Com meus irmãos e comigo dentro. A mãe de um amiguinho paga a minha caixa escolar e me sinto humilhado por isso e pelas roupas dadas. Odeio essa bolsa de couro velha que não combina com um menino que devia ter uma mochila. Não sei se odeio andar maltrapilho. Acho que não. Odeio mais ser achincalhado. Virar chacota por esse motivo. Não tenho videogame. Lá em casa nós vendemos garrafas para comer ovo. Estou enjoado de ovo.  E de angu também. Naquele quintal só se come angu. Às vezes eu penso. Será que eu vou ser um adulto amargurado? Não. Acho que não. Pois quando eu voei para pegar o apontador que caiu no chão e devolvi a menina, eu me senti o menino mais feliz do mundo. E ainda escrevi um conto curto sobre isso.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

A Beleza Previsível De Cristina Kirchner

Ele sentou no bar e pediu um café. Depois tirou um cigarro e foi para a porta do boteco. Começou a jogar fumaça na cara dos transeuntes. Eu tinha lido todos aqueles livros e o que não me faltava era assunto. Queria falar da importância daquilo tudo. Mas ele ouve essa falácia todo dia. Quando ela chegou, ele disse: hum. E ela: bom dia... Ela era uma mulher no auge dos seus cinquenta anos, com uma beleza previsível e cara de âncora do jornal da noite. Ele foi muito educado. Ela exibiu a mesma classe que tem Cristina kirchner. E num gesto de enfermaria segurou o braço trêmulo do escritor. Eles pararam um táxi. O carro partiu. Eu olhei para as nuvens de cafeína e nicotina que subiam. O preto no balcão olhando minha cara perguntou: você sabe quem ele é? E respondi: eu sei quem ele é. 

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

João Banana

Naquela casa tudo é velho. O ventilador com hélices de alumínio. O vídeo cassete. Os móveis. A tinta das paredes. O fogão enorme. A geladeira. Inclusive o velho gorducho com bochechas rosadas que ouve ópera numa vitrola e apoia os pés num banquinho. E todas as histórias. Ele limpa a garganta e com a sua voz mais áspera diz:
 Antigamente o sujeito entrava num lugar e pedia: me dá uma média com pão e manteiga. Hoje em dia não tem mais isso (o autor discorda). Antigamente o sujeito entrava numa mercearia, pegava um tomate e saia comendo. Hoje em dia não tem mais isso. Antigamente não existia droga. O único cara que fumava maconha aqui era um tal de João Banana. Foi o primeiro maconheiro que vi. Ele ficava dentro do bar, mas só fumava escondido. Hoje em dia está tudo mudado...
Quando disse isso o fiquei imaginado ainda de calças curtas, olhando esse tal de João Banana palitando os dentes  todo de branco parado em frente ao bar, e pensando como ele ia esconder a erva do diabo. Como eles diziam. Antigamente.