Se eu dizia ter ouvido alguém me chamar e não via ninguém a minha mãe me mandava gritar: “Não vou não, estou com Deus!” Quando o meu pai vacilava ela dava o vatícinio: “Mas que merda de homem!” Quando caía um garfo no chão: “Vem um homem aí” Se fosse uma colher: “Vem aí uma mulher” Quando as crianças estavam fazendo muita algazarra a minha mãe sempre dizia: “Muito riso e alegria é sinal de choro e de tristeza!” E sobre os invejos após algum feito extraordinário: “Vai ter gente que vai meter o dedo no cu e vai rasgar!” E sobre pessoas metidas: “Não tem merda no cu pra cagar!” Se eu desejava que o meu pai voltasse logo ela me aconselhava: “Diz o nome dele atrás da porta!” E quando eu fazia alguma merda a minha mãe era certeira: “Depois vai chorar na cama que é lugar quente.” Hoje eu teria respondido a tudo o que ela me dizia com: “A voz do povo é a voz de Deus!” A minha mãe é de um tempo e de um Brasil místico em que se acreditava na sabedoria popular e a forma de repassar essa “sabedoria” era através dos seus ditados.
quarta-feira, 19 de maio de 2021
sábado, 15 de maio de 2021
Eu Tenho o Meu Trabalho
Pode ser aqui e agora,
dessarte quando triste,
ou até mesmo solitário.
Eu tenho o meu trabalho.
Nas festas de fim de ano,
quando todos comemoram,
e nas noites frias de inverno,
Eu tenho o meu trabalho.
Quando falta dinheiro,
quando falta amor,
quando sobra tédio,
Eu tenho o meu trabalho.
Caso não seja inteligente,
e não alcance a perfeição,
ou seja, bom o suficiente.
Eu tenho o meu trabalho.
Pode não valer a pena,
posso não ter talento,
mas ocupa a minha mente,
e constrói o meu tempo.
quarta-feira, 5 de maio de 2021
Hoje é o dia da língua portuguesa
Hoje é o dia da língua portuguesa
Uma língua complexa
E cheia de recursos
Com um vasto repertório construtora de
beleza
Hoje é o dia da língua clássica de Camões
E da língua afiada de Nelson Rodrigues
Toda língua em suas transmutações
Sobrevive
Hoje é o dia da língua brasileira
Da língua angolana
Com as suas nuances
E as suas várias, dramas
Hoje é o dia da língua das ruas
Dos ditados e das gírias
Do informal, da norma culta
Da língua do povo e das academias
terça-feira, 27 de abril de 2021
O Gaudí da Capicua
Na canção Gaudí da cantora de rap portuguesa
Capicua, é possível sentir o mal-estar na civilização do mundo pós-moderno e
líquido em que vivemos. Tudo se desfaz e desmorona. A solução está longe de ser
aquela apresentada pelo capitalismo e consumismo no qual vivemos e do qual não
conseguimos fugir. Estamos afundados numa bolha de marketing digital consumidos
por ela e por suas exigências de mercado.
Não há mais como ser original. Não adianta tentar
vender um novo estilo de vida. É o fim das esperanças e das ideologias. A protagonista
da letra se vê num emaranhado de relações que não escolheu; às quais vai sendo
levada e quando percebe é alcançada pelo tédio de toda a expectativa da era da
ansiedade. Ela correu atrás de tudo e de todos; das “curtidas” à projeção
pessoal e no final não alcançou à tão sonhada satisfação permanente.
As relações são superficiais. O mundo é superficial. As
fronteiras não são as mesmas de antigamente, como aquela que delimitava se nós
seríamos originais ou não. Tudo é vendido e comercializado. Tudo é moda e toda
moda é passageira. O seu tempo, o seu sono, e até a comida que você come
corresponde à sua persona criada ou inventada. Sobra um resquício de si. A
projeção distante do que poderia ter sido. Não há mais o que inventar.
As notícias são falsas porque o mundo é falso. E se
antes nos identificávamos com as nossas mentes e com os nossos pensamentos,
agora não passamos de joguetes de um espelho onde tentamos interpretar a nós
próprios. Sofremos da síndrome do impostor. Do pensamento acelerado. Isso nos
consome porque não há saída. Ou a pessoa se faz de tola e finge que ainda
existe rebeldia possível, ou ela aceita ser apenas um código de barras.
A ansiedade nos leva aos vícios e a ficar na cama
prostrados como ela diz. Alguns não conseguem se movimentar e simplesmente
travam. Pois cansaram de trocar as suas máscaras sociais. O ansioso faz tanto e
de um momento para o outro chega à exaustão e simplesmente não consegue se
mover. Acaba. Nessa hora é preciso morrer um pouco para não desfalecer
completamente. Até que surja o próximo guru ou remédio com o alívio.
Não convivemos com as nossas limitações. Não
conseguimos ser comuns. Nós, uns vendemos aos outros vidas especiais e tremendamente
sublimes, mas não há espaço para todo mundo. Nem todos andarão no tapete
vermelho da festa do Oscar. A maioria esmagadora terá de ficar de fora. Para
que os ricos, bonitos, e felizes possam acordar todos os dias e aproveitar,
pessoas comuns e feias tem de fazer o trabalho sujo de limpar as privadas.
E qual é a solução? O problema numa perspectiva
realista; importante frisar, não é pessimista, não há solução. Pois nunca
houve, a vida sempre foi assim, e continuará sendo durante toda a eternidade.
Porque nós temos uma ou duas coisas que podemos fazer debaixo do sol, sobre a
terra, o resto é correr atrás do vento como dizia o profeta. Ninguém vai sacar
da cartola uma solução mágica e resolver o problema de “ser humano”.
Nós somos limitados no âmago. Não adianta conquistar
Marte. Esta é a única constatação, nós não fazemos diferença alguma para a
natureza, e na hora que ela quiser nos chutar daqui ela nos chuta. E ninguém
vai nem notar a nossa falta. E os grandes homens do passado da humanidade?
Podem ter influenciado muito ou ainda influenciar, mas se nos pusermos num
ponto de vista materialista, hoje eles não passam de adubo.
Então fazer o quê? Desistir? Ir morar numa cabana?
Meter uma bala na cabeça? Não, nada disso vai resolver. Mas ter consciência de
que não é tanto nem tão pouco pode ajudar bastante. És um sortudo por respirar
e poder conhecer esta vida apesar dos pesares. Capicua foi certeira em sua
divagação. Pena que no meio do excesso de informação que circula no mundo, a
profundidade de sua poesia possa passar despercebida.
Talvez assim como a protagonista da música, a solução seja ocupar a mente, ou fazer arte como ela propõe no refrão, para sublimar o seu sofrimento ela vai juntar os seus caquinhos e fazer um Gaudí.
segunda-feira, 26 de abril de 2021
Olaio
António Olaio é um artista plástico performático e
cantor angolano nascido em 1963. Hoje é professor do departamento da
Universidade de Coimbra. Radicado em Portugal conviveu com personagens da
efervescência cultural pós o 25 de Abril da revolução portuguesa. No início dos
anos oitenta, durante os seus estudos superiores, aos 21 anos Olaio começou a
criar as suas performances.
Em 1984 apresentou a sua primeira performance Il
Faut Danser Portugal no Centre Georges Pompidou em França, da qual disse
ainda sentir orgulho, e ser uma daquelas obras que mesmo com o passar dos anos
o artista ainda considera bem concebida.
Ao dar a sua visão sobre a arte performática, Olaio
diz acreditar que estas intervenções não podem ser comparadas com um espetáculo
teatral em que existe a distância entre o ator e a plateia, em sua opinião de perfomer,
a experiência é mútua entre o público e o artista, pois é como se a audiência
fizesse parte da apresentação.
Na obra citada acima, vemos Olaio atuar ao som de uma
música do cancioneiro popular norte-americano, o que é uma influência bastante
significativa no trabalho que veio a desenvolver. Olaio, em suas palavras,
desejava ser um artista plástico que cantava. Então ajudou a fundar a banda Repórter
Estrábico, uma junção de bandas de outros amigos.
O grupo de tecno pop teve atuação direta no movimento
dos oitenta, e ainda hoje é reconhecido como uma das maiores influências
daquela geração. E tem o seu papel histórico na cultura pop portuguesa. Após
Olaio deixar os Repórteres Estrábicos, iniciou a sua carreira solo no
mundo musical.
O aspecto marcante na obra de Olaio; para frisar a sua
música, é a sua inventividade e versatilidade diante do objeto definido. Os
seus videoclipes fogem do que se espera de um vídeo musical, e vemos a sua
música sendo apresentada performaticamente. Em sua confecção também está o
artista plástico. É um trabalho incomum, pois traz todas as características de
um artesão múltiplo que trabalha somente em prol da sua criatividade.
Olaio criou letras em instrumentais que serviram de
trilha sonora para filmes westerns, o que rememora o hip-hop. Prática
comum entre rappers brasileiros quando não tinham dinheiro para produzir as
suas músicas. Olaio canta desde standards como canções americanas dos
anos trinta, até o que há de mais ácido em termos de indie. Só para citar
alguns exemplos como: Potatos Farm, A Little Bird in a Tree e a
bela Pictures Are Not Movies.
Olaio deixa como exemplo a sua capacidade de se
reinventar e fazer com que a dificuldade se transforme em viés criativo. Além
de não limitar o seu trabalho e se apropriar dos meios que tem. Gera uma ideia
e age em prol dela sem depender das condições ao seu redor. Se deseja cantar
com uma orquestra, ou é inspirado por ela, ele põe o disco na vitrola e compõe
uma letra para a música. Nada o impede de criar.
Referência:
Apresentação de António Olaio no curso de Cinema
Documental na classe de Cinema e Contemporaneidade da ESTA-Abrantes/IPT em Abril
de 2021 presidida pelo professor Nuno Vieira.
https://www.academia.edu/47747320/Olaio
quinta-feira, 22 de abril de 2021
Ripada
Ela deseja ser ripada, remixada
Não gosta de ficar em biblioteca sublimada
Sublinhada solapada top tipo dez mais
Ela é um sampler do hit esquecer jamais
Ela é deve ser letrada, bem informada
Por sua fraseologia, tão acurada
Não gosta de ser tocada só porque alguém pagou
No lobby do mecenas que o vento soprou
Ela deseja ser lembrada, não repetida
Virar trilha sonora, nunca esquecida
Porque ela tem swing, sinuosidade
Ela é um Groove, de sensualidade
Eu saí pintada, toda esculpida
Na face um remake toda erodida
Ela vai ao encontro do arranjo sedutor
No tom potente da voz do estentor
Ela quer ocupar a minha partitura
Ela quer ser dona da minha tablatura
Ela quer ser ouvida pois intimida
E vem me visitar à noite desinibida
Ela sabe o que deve
E o que não deve fazer
Não sou eu quem vai falar
Não sou eu quem vai dizer
Eu sei quem eu sou
E o que desejo ter
Ela sabe muito bem
Como isso tem de ser
Eu vou ao seu encontro
Antes do sol nascer
E nós vamos ficar juntos
Porque juntos é viver
A Víbora Cornuda
- Uma víbora cornuda mordeu um homem aqui perto.
- Que isso!
- Mas ninguém sabe de onde ela veio. Não existem víboras cornudas na região.
- Você disse uma víbora cornuda eu pensei que fosse uma mulher.
- Mais respeito com as mulheres!
- Você conhece alguma víbora cornuda?
- Sim. E homens também!