domingo, 11 de dezembro de 2011

O Dia Em Que Samuel Nasceu

Samuel nasceu num sábado. E fazia um solzinho desses que teima aparecer. Ele pensa que sábado é melhor que domingo. Pois no domingo a gente só pensa em acordar cedo na segunda-feira. E teve bandinha de música e tudo. Um tio policial militar trouxe a bandinha. Embora Samuel tenha medo de polícia, atualmente. Ele nasceu naquele hospital que fica numa ladeira próxima a sua casa. Samuel não se lembra da enfermeira. Nem do médico ou de como eles eram. E olha que o seu nome é uma homenagem ao médico que o puxou cá pra fora. Mas sempre que sente cheiro de éter e ele vê paredes brancas se lembra do hospital. E diz isso a mãe que responde dizendo: é mesmo... você se lembra do dia em que nasceu? Nossa que menino inteligente!

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Deus Tem Uma Conta No Bradesco

Eu tô travado ali. Olhando a tevê. Não tenho tevê a cabo. E nem tenho gato. Então fico ali. Mas na verdade é só na hora em que eu tô comendo. Porque não consigo assistir televisão. Ela me faz mal. Ainda mais naquela hora em que você acorda com a cabeça fresquinha, e eles começam a informar quem morreu. Televisão de manhã faz mal. Você tem um sono tranqüilo e acorda com toda a desgraça do mundo caindo na tua cabeça. Não dá pra começar o dia assim. E se continuo assistindo, daqui a pouco tô com medo de sair na rua. É uma péssima oração para se começar o dia. Eles não dizem que alguém nasceu feliz da vida. Ou que acontecem coisas legais também. E a exceção para eles é sempre a regra. Mas bater na televisão é bater em cachorro morto. Eu não acho que seja o meio, e sim o que fizeram dele. Igual qualquer coisa na vida. Não tenho nada contra a televisão. Apenas prefiro outras coisas. Se tiver algo que me agrade eu assisto. Igual agora que não consigo me desvencilhar daquele cara. É um pastor. Já tentei assistir outra coisa. Eu pulo os jornais. Num canal tá uma atriz falando de sua vida, e num outro um cantor sertanejo falando de sua vida. E a vida deles é muita chata. Agora o pastor me pede para depositar o dízimo, e mais dez por cento da oferta. Então calculo esse valor de acordo com o salário mínimo, e chego à conclusão de que é muito. Assim como é muito para um livro, um show, ou uma peça de teatro. Aí ele começa a dizer que essa conta é de Deus. Para a obra dele. E eu não consigo parar de rir pensando que Deus tem uma conta no Bradesco.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Músicos e bebida: Mistura Explosiva!

O meu avô era um músico-bêbado. Eu sou um artista-vagabundo. Mas fui intitulado assim contra a minha vontade. Não consegui ser um bêbado. Mas quem sabe algum dia seja promovido. O meu avô era analfabeto. Eu sou semi-analfabeto. O meu avô nunca foi à escola. Eu fui expulso de lá. Ele saia para comprar pão e voltava três dias depois com uma rosa na boca. E a minha avó dizia: eu vou te fazer engolir essa rosa! Eu não tenho coragem de desafiar minha mulher desse jeito. Medo. O meu avô era autodidata. Eu sou também. Sem a mesma eficiência, é claro. Ele ensinava todos os instrumentos para todo mundo. Aquele ouvido do bruto era perfeito. Existe uma lenda de que ele lia partitura, e outra de que era amigo de Mário Reis e Francisco Alves. Não tenho como provar nada disso. Pois a fonte é um filho mais velho e fã. Quando assisti o caminhar mareado de Jack Sparrow, lembrei-me dele. No dia em que meu avô deu uma banana pra gente, eu me sentei com a minha prima gorducha no meio-fio. E a melhor lembrança era aquela em que nos levava para andar por aí. Ele tirava o chapéu para cumprimentar todo mundo. E eu dizia: quando crescer, eu quero ser igual a esse velho! Que ironia, não?

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Corredor Polonês de Crente

De longe ouviu a gritaria. O senhor vai voltar. Acha aquilo estranho, mas continua andando. Vê uma porção de homens de terno e senhoras de vestidos longos. Caixinhas de som, e entrega de folhetinhos. Recebeu um da mão de uma senhora com cara de ralei muito. Numa mesa um bandido estava sentado com todo o produto. E o outro em pé ao lado dele. Não entendeu aquele corredor polonês de crentes na rua da boca. Pó de cinco. Maconha de dois. Era o que o vapor gritava. Da mesma maneira que eles gritam naquelas filmagens de câmera escondida na tevê. E ele disse: maconha de dois. E aí foi jogar o folheto fora, na lata de lixo próxima. O bandido com um boné de NY disse: não faça isso! Não fez. De repente surge um moleque que fazia a contenção no beco e grita: pastor, hoje eu não tô bem, me dá uma luz! O homem de terno põe a mão na cabeça do rapaz. Ele pega a maconha e quando vai sair, o outro moleque diz: qual é? Não pode sair agora não, é falta de respeito, ô! O cara fica por ali e pensa que vai chegar atrasado ao trampo de segurança.

sábado, 26 de novembro de 2011

Plano de Saúde

Não tenho dinheiro. O meu trabalho é uma droga. Ninguém vai com a minha cara. O mundo é uma merda. Eu pensava todas essas coisas. Depressão. Não conseguia me concentrar na formiga subindo a parede. Dor no estômago. É a ansiedade quando sufoca. Então disse a mina: tô ansioso. E ela: vamos ao médico, essa merda mata! Entrei. Clínico geral. Branco. Cabelos grisalhos. Sessentão. Ele me pergunta: senhor, qual é a tua doença? E eu: ansiedade. Ele me olha irritado. Depois diz: tem que ir num psicólogo! Então respirou e refez a pergunta: senhor, o quê está sentindo? Ansiedade. E ele: tira a camisa e deita ali naquela cama. Eu deitei. O homem de branco colocou uns fios em mim. Ele olha um aparelho e conclui: tudo bem. Eu levantei. Ele anotou umas coisas e disse: faz esses exames aqui. Apertou a minha mão, e bom dia. Eu fiquei com cara de ponto de interrogação, esperando que o médico se desculpasse, ou que me pedisse para voltar. A minha ansiedade aumentou. A minha autoestima diminuiu. E acho que na volta para casa me senti pior.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Milícia (Mal de Freixo)

Eu perguntei a ele: o quê você acha do prefeito defender a milícia? O cara falou que elas resolveram o problema da violência em locais em que o governo não chegava. Ele disse: não sei. Acho, eles sinistros. Ele mora num local onde tem milícia. Olha a espuma no copo e acende outro cigarro. Eu pergunto: sinistros, como assim? E ele: teve um dia desses que um moleque de dezesseis anos foi roubar em outro lugar. Quando ele voltou não sei como, mas eles descobriram. Pegaram esse moleque e a namorada de catorze. Espancaram até a morte. Não deram um tiro. Só se ouvia os gritos. Num sei se isso é certo ou não. Os olhos dele brilham. Eu digo: talvez, não.

sábado, 19 de novembro de 2011

Dia 20 de Novembro

Naquela família todo mundo é preto. Eles estão na sala. Uns a favor. Outros contra. Onze pessoas. A tevê ligada na teledramaturgia. O rastafári fala: cara, não há um viado preto com quem se possa conversar nessa merda de país. Só um. Eles não entendem o que eu digo! A prima do meio: mas os negros também não se dão o respeito... Já viu como esses putos entram no ônibus? O tio mais velho: e os índios, cara?! O rastafári explode: eles que se fodam! Eles que cuidem do seu próprio rabo. Todos têm que se defender cara. Os índios, os viados, todo mundo. A prima diz: chamar de viado é preconceito! Ele balança a cabeça como se não entendesse. A tia doutora numa timidez forçada diz: sou contra cotas. Eu estudei em escola pública. O Rasta continua: já falei que não sou contra cota pra pobre. Faça isso e os pretos serão incluídos. Depois que ele diz isso de maneira incisiva, parece que chegam a uma trégua. E por alguns segundos se instala o silêncio. Quando o primo gordinho faz um olhar de riso e interrompe: aí primo, na novela quase não tem preto. O Rasta responde: é, mas tem uma porção deles assistindo! A discussão recomeça. Com a mesma gritaria.