sexta-feira, 21 de outubro de 2011

A Vida Literária

Ele olhou para a tela do computador. Talvez tenha tido um “bloqueio criativo”, como dizem àqueles escritores que nunca tem o que dizer. E o papel que não é papel ou a folha que não é folha, em branco, na tela. E pensou. Pro diabo! Não sou obrigado a escrever essas porcarias... Pegou uma música que não saía da cabeça, e saiu assobiando. Viu a pichação de parede. A sujeira dos garis. A fumaça que os carros soltam com a expiração. Os camelôs repletos de DVDs piratas. A criança com cara e uniforme de escola pública. O solzinho que há dias não dava as caras. E pensou. A vida continua literária.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Como Se Samuel, Fosse Eduardo

Eduardo chamou Samuel. Samuel. Vamos à outra rua? A outra rua é a rua paralela a rua de paralelepípedo em que eles moram. Samuel disse: não. Eduardo disse: tá. Samuel não quis ir não sabe nem por que, se sua mãe nem estava lá. Mas simplesmente não quis brincar. Preferiu assistir desenho. Eduardo atravessou aquele corredor imenso, e cheio de casinhas, que dá para outra rua. A senhora que estava no tanque viu Eduardo passando. Se o corredor estivesse cheio, talvez ele parasse para conversar com as outras crianças. Mas àquela hora estava vazio. Ninguém havia chegado da escola, ainda. O caminhão. Samuel só ouvia falar daquele caminhão. Ele ainda ia ouvir falar muito daquele caminhão, que nunca viu. E talvez crescesse, e o caminhão, quem sabe. A mãe de Samuel ao chegar do trabalho abraçou o filho e beijou de maneira que ele nunca viu. E depois ela o puxou para aquela casinha do corredor ao lado, em que Eduardo vivia com a mãe e o pai. Samuel teve que contar a ida de Eduardo a sua casa mil vezes. E nunca esqueceu a maneira como a mãe de Eduardo o abraço e beijou. Como se Samuel, fosse Eduardo.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

O Meu Blog É Um Deserto

O meu blog é um deserto. Túmulo desértico. Triste como a caatinga. O sertão. O árido e o semiárido. O meu blog é uma solidão. Lotado de textos que ninguém lê. Ou quase, ninguém. Alguns entram aqui por acaso, procurando alguma coisa no Google. E ainda saem irritados, pois a palavra chave é a mesma; mas o assunto, não. Milhares de textos dentro do computador. No armário. Quem sabe obras póstumas pelas mãos de algum parente atencioso. A internet é um universo. E dentro desse universo tem um lugar que é o meu blog. Terra improdutiva. Elefante branco. Numa solidão só. Igual milhões de outros blogs. Sem consolo.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

No Meio do Dilúvio

Ela diz algo para todo mundo na fila. Ninguém dá a mínima para o quê diz. Todo mundo só está preocupado com a própria vida. Tudo é mais importante. O time. A festinha de aniversário do filho. A ração do cachorro. Todo mundo tem com quê se preocupar. De repente dá um trovão e desce uma pancada de chuva do céu. Eu também saio correndo para me abrigar embaixo da marquise. E no meio do dilúvio, a velhinha maltrapilha diz: eu avisei que o meu pai ia pegar vocês...

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Boca-Podre

Ele é barbudo. E treme. Treme sempre que bebe, ou antes, de beber. Mas treme. Os meninos gritam para ele: Boca-Podre! Ele tem os dentes estragados. É magro. E a mãe de olhos fundos, todo o dia faz um tour pelos bares atrás dele. Mas nem sempre foi assim. Dizem que era engenheiro e coisa e tal. Uma tia minha diz: ih, ele era bonito! E o meu tio: a noiva do Boca era um pitéu... Então ele foi derrotado ou desistiu de lutar? Não sei. A história que contam é que ficou assim por causa dessa menina. Uma ingrata que o abandonou na porta da igreja. Assim mesmo. Igual em novela. E o Boca-Podre não soube administrar o vexame perante a comunidade. Mas quando eu o vejo, tento visualizar a cena do Boca chegando do trabalho, e passando na casa da namoradinha para dar um beijo. Mas confesso que é difícil imaginar isso. Muito difícil.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Coisa de Momento

Eu sou soropositivo há vinte e cinco anos. Hoje em dia dá para se viver com AIDS. O governo sabe disso. Mas eles não vão dizer isso na televisão, porque se não vai ter uma porção de maluco que não vai mais usar camisinha. Ele disse. E eu perguntei: Você se arrepende de não ter usado camisinha? E ele: não, cara. O sexo é um momento. É coisa de momento. Naquele momento ali, eu fiz isso.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Homem-Maduro

Ela ficou impressionada com o homem maduro que conheceu na internet. E disse as amigas: é... gente, eu prefiro homens maduros. E não me engano! Até a voz dele no telefone era uma voz madura. Ela cresceu ouvindo dizer que as meninas evoluem mais rápido que os meninos. E se lembra do primeiro namoradinho. Quando disse a ele: para de correr para lá e para cá e se suar. Sem graça, ele parou. E agora foi aquele cara. Mais de trinta anos e morava com a mãe e só andava de bermuda e de calça larga, como se fosse um adolescente. E ainda disse a ela: homem pra vocês é aquele com barriga de chopp no sofá, e três filhos correndo pela casa. Ela ia pensando quando chegou à entrada do shopping. Mas não ficou nada feliz ao ver um menino de dezesseis anos de bochechas rosadas e sorridente, vestindo as roupas do seu homem maduro.