quarta-feira, 18 de maio de 2011

O Cara Magro de Cabeça Raspada

Eu tava com medo de ficar com eles na praça, aí o Cara Magro disse: cara eu não tô fazendo nada de errado, se ligou? A gente não tá fazendo nada de errado, a gente paga imposto, se ficar se escondendo é pior. Os outros dois não deram a mínima para o quê ele disse e continuaram com aquele assunto sem importância. Nós íamos andando em direção ao ponto de ônibus. Quando o busão chegou, eu paguei a minha passagem e fui me sentar atrás. Mania. E o Cara Magro de Cabeça Raspada falou: cara porque você tá indo para o fundo? Vocês sempre vão para o fundo, vamos sentar aqui na frente, senta aqui na frente, tem lugar aqui, isso me agride... Isso é agressivo, cara! Os outros dois olharam para ele como se fosse maluco, mas sentaram e deram um gás no papo. Eu fiquei sem graça e me sentei na frente. Os outros passageiros ficaram nos olhando sem entender nada.

domingo, 15 de maio de 2011

O Dia do Livro

No dia seguinte ia rolar o dia do livro e eu estava tão ansioso que não consegui dormir e saí catando livros pela cidade. Sempre que está próximo ao dia do livro os sebos e as livrarias fazem isso, aumentam o preço dos livros. A cidade fica intransitável. Todo mundo sai às ruas para comprar livros. Isso gera engarrafamentos e quem tem carro não encontra lugar para estacionar. Ninguém consegue andar nas calçadas. Os bandidos começam a roubar nos pontos de ônibus e dentro deles também. A minha tática era sair com um aspecto miserável e colocar tudo dentro de caixas velhas de papelão e ficar parecendo um mendigo andarilho, um louco qualquer, que é o quê eu realmente não sou. Passei o dia todo suando e dizendo: hei, me ajuda aqui! No dia do livro as pessoas ficam mais felizes. Eu olho para os seus semblantes e elas estão mais leves e é essa mesma leveza que elas têm nas filas de cinema sábado à noite. As que freqüentam cinema é claro. Todo mundo prepara a ceia durante horas e quando dá meia noite pipocam os fogos. Eu fui dormir tarde, mas acordei cedo e sai. O dia amanheceu com sol, esse ano não choveu como previsto. Um senhor que estava com a casa aberta me chamou. Fui logo olhando os livros e vi um que procurava entre os outros na sala, e ansioso disse: eu tenho esses aqui. Ele chamou a menina pretinha de coque na cabeça e disse: aqui minha filha, aquela série que você gosta! Os olhos da menina brilharam. E os meus também.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Barrado na Academia Brasileira de Letras

Um almofadinha desses que apresentam jornal na hora do almoço me disse que ia rolar um debate sobre funk e hip-hop na ABL. Como eu estava indo para o centro da cidade resolvi dar uma passada por lá. Chegando ao local nenhum conhecido, e sim uma porção de crianças com camisas da maior ONG de hip-hop do Brasil. E pretos seguranças de terno preto. Entrei ressabiado, pois tenho medo de locais chiques. É uma coisa que nós pretos suburbanos latino-americanos temos, apesar das campanhas pela auto-estima. Um DJ conhecido meu acenou para que eu chegasse mais. E aquele papo de sempre: e aí como é que tá o rap? Legal tá indo bem. Quando o chamaram para retomar o trabalho fiquei só e frustrado no meio daquelas crianças. Resolvi que não ficaria por ali, pois não havia nem sinal de que o debate fosse começar. Avistei uma porção de jovens brancos e legais desses que lidam com a cultura e fui para o meio deles, pois estava realmente constrangido de ser o único adulto próximo aquelas crianças. Quando o segurança preto percebeu que eu estava perto da rapaziada sem crachá, ele veio até a mim e me perguntou: você é da ONG? Eu disse: não. E ele: então o senhor não pode ficar aqui. E eu disse a ele: então eu vou embora! Engraçado que eu fui barrado na ABL não pelo meu péssimo português e sim pela cor do meu texto. Quem sabe se eu usasse outra fonte...

domingo, 1 de maio de 2011

Bullying

Enquanto ele caminha para a escola em que estudou, ainda vê as fezes nas lentes dos óculos, escuta a gritaria de alegria no banheiro e sente a água da privada batendo em sua cara. Ele ainda escuta as risadas de quando aquele menino preto entrou com uma peruca loura na quadra. O menino estava vestido igual à menina que havia marcado com ele. O rapaz ainda lembra como ficou preso na lata de lixo em que foi jogado. Ele não falava nada na escola. Ninguém falava nada com ele. Ele não tinha amigos. Ele não tinha namorada. Às vezes sumia por um ou dois dias e quando voltava se sentava no mesmo lugar. Um menino gordo tentou se aproximar uma vez, mas como não obteve resposta, desistiu, pois ele havia olhado desconfiado como se o gordo quisesse debochar dele. Uma vez no corredor ouviu uma menina dizer: deve ser viado! O médico disse: ele apresenta um quadro normal. O sacerdote na tevê: deus tem um propósito pra tua vida! E o herói na televisão: eu não descanso enquanto não vingar a morte da minha mulher! E uma vizinha que o assistia passar todo dia para comprar refrigerante: moleque esquisito, não fala com ninguém! No trabalho ele era calado e prestativo como diriam os colegas. O sobrinho disse que o tio era estranho e que quando ia a sua casa passava a maior parte do tempo na internet. Dentro da escola um homem do governo e de terno dava entrevista dizendo que a solução era diminuir o tráfico de armas. Do lado de fora um vizinho respondia ao repórter: ele era um cara normal. Normal.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Ondas Gigantes

Era um cenário de filme pós-apolítico. Eu me lembrei do Mad-Max. O mundo era obscuro. A cidade quase vazia. Eu me encontrava dentro da carcaça de um ônibus embaixo de uma ponte. Dali avistei a rua alagada, era o dilúvio. Uma banca de jornal virada. Pelo canto do olho, eu vi surgir uma grupo de seres iguais aqueles zumbis de Eu Sou a Lenda. Eles estavam com cajados dentro da água. Não sabia se iam atacar. Próximo a eles também um ser mutante. Esse ser era um homem-mulher, talvez tivesse três seios, e carregava um pequeno ser. Uma espécie de profeta do novo mundo, imerso, gritava sobre nosso fracasso e os castigos de deus. De outro ônibus que servia como uma espécie de tenda para outras pessoas, um grupo atiçava e debatia com esse profeta. Quando resolvi ampliar minha visão, acordei e vi que estava em São Cristóvão na Rua Bela, num ônibus parado numa enchente. Um bêbado discutia com o pessoal do ônibus ao lado. Uns crackudos com pedaços de madeira tentavam encontrar alguma coisa de valor no meio de toda sujeira. Um travesti passava com uma criança no colo. E duas senhoras com os corpos cobertos davam um discurso: deus vigia, mas nós temos que acreditar! Quando um preto com uniforme da COMLURB disse: nós só vamos sair daqui amanhã de manhã. Uma das senhoras gritou: vira essa boca pra lá, um anjo de deus vai fazer descer essa água e tirar a gente daqui. O anjo de deus devia estar um pouco atarefado, pois a água só desceu quatro horas da manhã.

domingo, 24 de abril de 2011

Spray de Pimenta

Ele sabia que não era com ele, mas mesmo assim olhou para trás, a velha mania de pensar que todo mundo na rua quer falar com a gente. Ou quando toca o telefone. Interfone. O jato de espuma foi certeiro na cara. Era carnaval. Todo mundo riu e ele ficou sem graça. Naquele bloco ninguém dançava ou cantava, a praça foi tomada por uma guerra de espuma. Mas aquela cena o lembrou da manifestação no centro da cidade. Ele não gostava de estudar, e não pagava passagem, pois morava perto da escola. Então estava cagando para tudo aquilo. Mas cedeu para não ter que aturar a aporrinhação dos colegas. E de lá eles iriam para o shopping que era melhor que matar aula só e ficar sem nada para fazer. O quê ele pensa desse tipo de coisa? Ele pensa que a maioria da população prefere morrer de fome a fazer alguma coisa. Então que se danem! Ele divagava que não tinha nada contra aqueles guardas do cordão de isolamento, quando a bomba de efeito moral explodiu o deixando sem moral nenhuma. Azucrinado ele pensou: “Não tenho experiência em guerras, meu deus, mas se uma guerra for assim eu tô fora!” Quando conseguiu recobrar os sentidos falou para si: “Está tudo bem, agora eu vou embora”. O guarda veio por trás e zás! Espirrou gás-pimenta em seu rosto. Hoje seu apelido é Coquetel Molotov.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Pressão Psicológica

O menino me olha da mesa ao lado. Ele pensa que eu olho para a garota. Igual um palestrante nervoso ele não sabe o quê fazer com as mãos. A menina parece ter mais experiência. Ela olha para os lados e finge prestar atenção em algo que tem muita importância e que talvez vá dar assunto. Eu sei que é mentira e que aquela cena daquele velhinho tentando pôr a neta nos ombros não tem tanta importância assim. O menino veste o macho que defende o seu território e fica me encarando, mas ao mesmo tempo tem que se preocupar com o quê dizer a menina. Os olhares dos dois são sempre perdidos, para cima, para baixo e para o lado. Eu sinto que estou atrapalhando o fluxo de pensamentos dele. A menina não me percebe ou pouco se importa comigo, pois sei que estou ao seu lado no campo de visão. Ele de novo me encara e eu o encaro profundamente como quem diz: não dou a mínima para você. Eu quero é saber como ele vai sair dessa. Ela está à espera do que ele vai dizer se é que ele vai dizer alguma coisa. Ele entrega os pontos. Fica de pé e diz a ela: vamos dar uma volta. E me olha como quem diz: você venceu.