domingo, 1 de maio de 2011

Bullying

Enquanto ele caminha para a escola em que estudou, ainda vê as fezes nas lentes dos óculos, escuta a gritaria de alegria no banheiro e sente a água da privada batendo em sua cara. Ele ainda escuta as risadas de quando aquele menino preto entrou com uma peruca loura na quadra. O menino estava vestido igual à menina que havia marcado com ele. O rapaz ainda lembra como ficou preso na lata de lixo em que foi jogado. Ele não falava nada na escola. Ninguém falava nada com ele. Ele não tinha amigos. Ele não tinha namorada. Às vezes sumia por um ou dois dias e quando voltava se sentava no mesmo lugar. Um menino gordo tentou se aproximar uma vez, mas como não obteve resposta, desistiu, pois ele havia olhado desconfiado como se o gordo quisesse debochar dele. Uma vez no corredor ouviu uma menina dizer: deve ser viado! O médico disse: ele apresenta um quadro normal. O sacerdote na tevê: deus tem um propósito pra tua vida! E o herói na televisão: eu não descanso enquanto não vingar a morte da minha mulher! E uma vizinha que o assistia passar todo dia para comprar refrigerante: moleque esquisito, não fala com ninguém! No trabalho ele era calado e prestativo como diriam os colegas. O sobrinho disse que o tio era estranho e que quando ia a sua casa passava a maior parte do tempo na internet. Dentro da escola um homem do governo e de terno dava entrevista dizendo que a solução era diminuir o tráfico de armas. Do lado de fora um vizinho respondia ao repórter: ele era um cara normal. Normal.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Ondas Gigantes

Era um cenário de filme pós-apolítico. Eu me lembrei do Mad-Max. O mundo era obscuro. A cidade quase vazia. Eu me encontrava dentro da carcaça de um ônibus embaixo de uma ponte. Dali avistei a rua alagada, era o dilúvio. Uma banca de jornal virada. Pelo canto do olho, eu vi surgir uma grupo de seres iguais aqueles zumbis de Eu Sou a Lenda. Eles estavam com cajados dentro da água. Não sabia se iam atacar. Próximo a eles também um ser mutante. Esse ser era um homem-mulher, talvez tivesse três seios, e carregava um pequeno ser. Uma espécie de profeta do novo mundo, imerso, gritava sobre nosso fracasso e os castigos de deus. De outro ônibus que servia como uma espécie de tenda para outras pessoas, um grupo atiçava e debatia com esse profeta. Quando resolvi ampliar minha visão, acordei e vi que estava em São Cristóvão na Rua Bela, num ônibus parado numa enchente. Um bêbado discutia com o pessoal do ônibus ao lado. Uns crackudos com pedaços de madeira tentavam encontrar alguma coisa de valor no meio de toda sujeira. Um travesti passava com uma criança no colo. E duas senhoras com os corpos cobertos davam um discurso: deus vigia, mas nós temos que acreditar! Quando um preto com uniforme da COMLURB disse: nós só vamos sair daqui amanhã de manhã. Uma das senhoras gritou: vira essa boca pra lá, um anjo de deus vai fazer descer essa água e tirar a gente daqui. O anjo de deus devia estar um pouco atarefado, pois a água só desceu quatro horas da manhã.

domingo, 24 de abril de 2011

Spray de Pimenta

Ele sabia que não era com ele, mas mesmo assim olhou para trás, a velha mania de pensar que todo mundo na rua quer falar com a gente. Ou quando toca o telefone. Interfone. O jato de espuma foi certeiro na cara. Era carnaval. Todo mundo riu e ele ficou sem graça. Naquele bloco ninguém dançava ou cantava, a praça foi tomada por uma guerra de espuma. Mas aquela cena o lembrou da manifestação no centro da cidade. Ele não gostava de estudar, e não pagava passagem, pois morava perto da escola. Então estava cagando para tudo aquilo. Mas cedeu para não ter que aturar a aporrinhação dos colegas. E de lá eles iriam para o shopping que era melhor que matar aula só e ficar sem nada para fazer. O quê ele pensa desse tipo de coisa? Ele pensa que a maioria da população prefere morrer de fome a fazer alguma coisa. Então que se danem! Ele divagava que não tinha nada contra aqueles guardas do cordão de isolamento, quando a bomba de efeito moral explodiu o deixando sem moral nenhuma. Azucrinado ele pensou: “Não tenho experiência em guerras, meu deus, mas se uma guerra for assim eu tô fora!” Quando conseguiu recobrar os sentidos falou para si: “Está tudo bem, agora eu vou embora”. O guarda veio por trás e zás! Espirrou gás-pimenta em seu rosto. Hoje seu apelido é Coquetel Molotov.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Pressão Psicológica

O menino me olha da mesa ao lado. Ele pensa que eu olho para a garota. Igual um palestrante nervoso ele não sabe o quê fazer com as mãos. A menina parece ter mais experiência. Ela olha para os lados e finge prestar atenção em algo que tem muita importância e que talvez vá dar assunto. Eu sei que é mentira e que aquela cena daquele velhinho tentando pôr a neta nos ombros não tem tanta importância assim. O menino veste o macho que defende o seu território e fica me encarando, mas ao mesmo tempo tem que se preocupar com o quê dizer a menina. Os olhares dos dois são sempre perdidos, para cima, para baixo e para o lado. Eu sinto que estou atrapalhando o fluxo de pensamentos dele. A menina não me percebe ou pouco se importa comigo, pois sei que estou ao seu lado no campo de visão. Ele de novo me encara e eu o encaro profundamente como quem diz: não dou a mínima para você. Eu quero é saber como ele vai sair dessa. Ela está à espera do que ele vai dizer se é que ele vai dizer alguma coisa. Ele entrega os pontos. Fica de pé e diz a ela: vamos dar uma volta. E me olha como quem diz: você venceu.

domingo, 17 de abril de 2011

A Estreia

Aquele segurança de boate me surpreendeu. O ambiente ficou com cara de área nobre. Eu estava curioso igual às crianças que foram levadas para lá por algumas professoras e para quem aquela porta era de chumbo. Os professores que moravam no bairro também estavam lá, e alguns malucos que ouviam música e fumavam erva. A minha preocupação na fila era: “Será que tem sofá aí dentro?” O negão que era o segurança me tranquilizou: “Tem. Tem sofá aí dentro.” E eu: “Show de bola!” E ele: “E vai ter café e água gelada, senhor.” E eu: “Massa!” De repente chegou um coroa de terno acompanhado de uma menina loura e magra de óculos que estava vestida como se fosse uma aeromoça. O Homem parecia ser o chefe de todo mundo. Eu me afastei intimidado e não ouvi o quê ele disse. Mas no final da embromação ele cortou a fita. Todo mundo como numa promoção de eletrodomésticos. Eu não acreditei naquele mundo de livros na estante. Era a primeira livraria decente entre muitos bairros do subúrbio. Eu não sabia por onde começar, não ia comprar nenhum daqueles livros, mas ia ler boa parte deles ali dentro.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Ele Era Divino!

Ele subiu cambaleando no mesmo ônibus que eu estava e sentou na escada para não pagar passagem. O motorista não pôde ver. Eu o reconheci logo, o cabelo grisalho, a barba mal feita e a camisa de botão aberta. Eu não teria coragem de falar com ele em outra ocasião, pois tem fama de mal-humorado. Mas ele estava tão bêbado que resolvi arriscar e disse: o meu pai conhece o senhor e... E ele disse: eu não me lembro de ninguém! Um tempo depois ele morreu de tanto beber. Mas dizem que antes de morrer comeu uma mulher mais nova que ele, e dizem que também fez algum dinheiro participando de um show de uma pagodeira famosa. Ele morreu na merda igual aqueles pintores antigos que morreram na merda e hoje em dia são nomes de serviços de banco, ou aqueles compositores para quem o pessoal do municipal cruza as pernas entre um bocejo e outro. A família dele mora na mesma casinha do subúrbio. Mas agora quando ele foi homenageado por sua escola de samba e sua obra virou tese em universidade e ele é cantado por sambistas que participaram da revitalização da Lapa, a madrinha da bateria que é atriz-modelo diz assim: ele era divino! Eu concordo que ele era divino!

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Roda Gigante

A escada que leva a Roda Gigante é enorme. A Roda Gigante é gigantesca. O meu pai diz: “Quando você crescer não vai achar a Roda Gigante tão grande assim.” Eu sinto que vou continuar vendo esta a Roda Gigante como imensa. A menina me olha da Roda Gigante. A Roda Gigante demora muito para dar uma volta completa. Eu quero que ela veja o quanto sou forte e como suporto bem todas essas voltas. Os meninos que conseguem suportar um giro da Roda Gigante sempre são recompensados com sorrisos e doces. Os olhos enormes da menina me acompanham do céu e ela tem um bocão com dentes grandes e brancos. Eu não estou aguentando e sinto vontade de vomitar as minhas tripas. O meu pai me pergunta: “Você é um homem ou é um bolinho de carne?” Eu quero dizer: "Eu sou um bolinho de carne!" Mas ele não vai entender. Quando a Roda Gigante chega ao cume eu sinto vontade de desistir. Enquanto penso isto, vejo a Roda Gigante chegar ao chão e me surpreendo por ter conseguido resistir. A mãe da menina a espera com os óculos na mão. Ela me olha com seus olhos estrábicos e me dá um sorriso. Ela põe os óculos e vai embora puxada por sua mãe.