quinta-feira, 4 de agosto de 2011
Vinte Anos De Sua Vida
Ele está com diabetes. Sabe que vai morrer. Outro dia o surpreendi
comendo uma lata de marrom glacê. Eu disse a ele: você vai morrer! Tá pensando que não, mas vai morrer! Isso foi
quase uma ameaça. Ele não tá nem aí. Tá ficando cego. Caiu no meio da rua
recentemente. Eu o levo para apostar nos cavalos. Já bebeu. Já fumou. Já cheirou
e comeu tudo que queria. Inclusive mulheres, ele diz. Andou viajando em navios
da marinha mercante durante um tempo. E fala: a minha pica é internacional! No
que eu digo: agora que você tá ficando cego, todo mundo vai comer o teu rabo! Ele ri e me diz que só não consegue parar com o cigarro. Lamenta. Parei de cheirar, mas
não consigo parar de fumar. Ele me olha sério e fala: se piorar, eu meto uma
bala na minha fuça. Tem uma no ferro esperando por mim. Não vou dar trabalho
pra ninguém. Fui eu mesmo que criei isso, ele conclui. Eu penso que viveu tudo o
que podia em vinte anos de sua vida.
segunda-feira, 1 de agosto de 2011
Serendipitoso
Quando eu pergunto a ele: E aí, como tá? Ele diz: tudo bem como
sempre. O cara já foi preso, e quando conta sobre a cadeia é sempre de maneira
engraçada. Mesmo ao falar da surra que o apagou durante dias. Ele passou um
tempo na solitária onde deixava a comida azeda para os ratos, e comia o resto
para que não cismassem com a sua refeição ou com ele. Tem pouco mais de trinta anos. Nunca perguntei
por que foi preso. Provavelmente por tráfico.
Realmente não acredito que faria mal a alguém se não fosse para se
defender. Um dia me disse: eu não sei andar na cidade direito, sempre vivi
dentro de favela. Enrola mais um cigarro e fuma tranquilamente sentado num
caixote. Tem uma barraca de frutas na feira da favela, e talvez seja a pessoa
mais tranquila que conheço. Mora num quartinho minúsculo. Não tem os dentes da
frente. E diz: volta aí pra trocar
idéia. Não me impressiono com as suas histórias. E sim com o fato de se sentir seguro nesse mundo com quase nada.
quinta-feira, 28 de julho de 2011
Sexta-Feira Felpuda!
De cima da passarela eu vi o sol no final da tarde. Ele estava
deslumbrando. Lindo. As pessoas passavam por mim. O trem embaixo. O motoqueiro
passou e disse: Cai fora, cara! Tá atrapalhando o trânsito. Fui embora.
Não dava para ficar namorando o sol o tempo todo. Ninguém ia entender. E agora
de noite vi a lua. Linda. Fez de tudo para ficar visível. Enfurnou-se entre as
árvores. Cheia. Felpuda. Sexta-feira. Todo mundo vai sair. Ninguém que trabalha
na cidade vai voltar para casa. Eles vão para todos os lugares. O trânsito em
direção ao subúrbio vai ficar tranqüilo na Avenida Brasil. Todo mundo vai
beber. Fumar. Cheirar. E serão guimbas e mais guimbas de cigarros. Pontas de
baseados. Rapas de pó. Dores de cabeça. Ressaca. Camisinhas sujas. Vai ter um
mundo de camisinhas sujas em motéis. Muita camisinha. Imagina uma pilha de camisinha.
Ele está deitado enquanto ela toma banho. Veja a cena. Ele diz para si mesmo:
sou feliz. Quando toca o despertador. Eu desço da passarela.
segunda-feira, 25 de julho de 2011
Tipo Sócrates
Eu tava maior babaca esse dia. Tava caminhando pela imensidão da
Avenida Rio Branco. Segunda-feira de manhã. E eu cá com meus botões tive uns
achados filosóficos. Tava me sentindo um puta filósofo. Inteligente pra cacete.
Tipo Sócrates. Imagina a cena. Um filósofo no meio de boys e secretárias. Aí eu
disse: a verdade é que ninguém trabalha para si próprio. Um trabalha para o outro. Será
que alguém já teve essa sacada? E emendei com aquelas perguntas básicas. Um
questionamento no mínimo adolescente. Por que somos tão “inteligentes”? Por que
fazemos música? Quem criou deus? Quando me toquei que nada sei.
Burro.
quinta-feira, 21 de julho de 2011
Cidade Das Mulheres
Eu tava chapado. Muito chapado. Caminhando pela cidade e
vendo as luzes. Sempre as luzes. Indo em direção ao metrô. De repente observei que
estava num mundo cercado de mulheres. Só existiam mulheres no mundo. E eu era o
único homem. Assim como naquele filme do cineasta italiano Federico Fellini em
que o ator Marcelo Mastroianni acorda num trem e desce numa cidade onde só
existem mulheres. Tava eu ali. Mas como é mundo moderno, metrô ao invés de
trem. Calculei estar sonhando. Ou sei lá o quê. Uma delas falou algo comigo. A música do Roberto Carlos em meu
ouvido não me deixava ouvir. Eu ia tirar o fone. Quando pintou um guardinha no meio da minha história. De uniforme, cassetete e tudo. Ah, não! É mole? E
ele gritou: vagão feminino! Fui.
segunda-feira, 18 de julho de 2011
Teto-Preto
Naquele dia faltou água na favela. A criançada tomava banho no chuveirinho. Uma menina gritou: mãe, eu não tô aguentando esse calor... eu vou meter minha cara no balde! Eu disse a ele: qual é cara, não anda com esse violão na capa não, que os caras
vão pensar que é fuzil. Ele tirou o violão da capa e falou: você é muito
medroso! Nós fomos para debaixo da escada. O Neguinho tava sentado no sofá com
um sorriso congelado e no olhar serenidade como se aquele fosse o lugar mais
interessante do mundo. Ele alcançou a iluminação. Entrei naquela nuvem de
fumaça. Dois moleques chegaram. Um preto e um branco. Tímidos. Ele disse: esse
cara fez aquele som que vocês gostam... Conversamos. Ele segredou: os dois
maiores 157 da favela. Quando eu vi o Neguinho começando a se encurvar até tombar do sofá. Um bêbado gritou:
teto-preto! As pessoas começaram a se aproximar. E aos poucos vieram os gritos. Teto-preto!
Teto-preto! Parecia gol do flamengo. Gritando e dançando, todo mundo.
quinta-feira, 14 de julho de 2011
Tática Covarde de Guerra
Faz calor. Estou no quarto. O chão é de ladrilho. Deito ali sem
camisa. Não adianta. Acordo suado. Boto o ventilador em cima de mim. Ele ri e
sopra um ventinho de vez em quando. Um calor dos infernos, eu digo. Não dá para
ficar na sala perto da janela; pois é onde bate o sol. As moscas atacam. Moscas
do inferno, eu digo. Nesses dias em que estamos lesados pela quentura,
elas usam essa tática covarde de guerra. Não dá para ficar em lugar algum. O
termômetro zomba da gente marcando quarenta e cinco graus. Ele sabe que a
sensação de calor é bem maior que isso. O motorista passa a toalhinha na cara.
O cara no elevador diz: tá abafado. A fumacinha sobe do asfalto da Avenida
Presidente Vargas. Eu penso que deus deu uns moles. Podia organizar tudo.
Chover toda segunda de madrugada para não atrapalhar ninguém. E sem essa de
quentura. Fodam-se os eco-chatos e suas teorias. Agora eu só quero matar essa
mosca desgraçada que não me deixa escrever.
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