O menino passou todo ensino básico olhando para aquela menina. Que devia se chamar Maria Clara ou Clarice. Algum nome desses que os ricos põem em seus filhos. O menino devia se chamar Zé ou Beto, uma dessas corruptelas que os pobres ganham junto dos seus nomes. A menina era branca de feições finas e narizinho arrebitado. Mas não era metida. Ela exibia uma cabeleira vermelha encaracolada. O menino era preto da cor da borracha do meu tênis. Mas por essa época ele ainda não sabia nada sobre racismo. Então isso não era nada que impedisse uma aproximação. Ele pressentia ser diferente. Mas não pela cor. Talvez por ter ganhado uma bolsa para estudar, e a sua mãe ser uma das faxineiras da escola. Todos os dias ele voltava para casa sozinho. Enquanto a sua mãe ficava varrendo a escola, a mãe da menina ia buscá-la. Todos os dias. A menina tirava as melhores notas. O menino era um aluno medíocre. Estava sempre a espreita da menina pelos corredores. Ela sempre retribuía o olhar. Ele sentia isso como uma forma de caridade. Aquele olhar era complacente. De santa. Como quem diz. Eu sei que você olha pra mim. Em nenhum momento ela era indiferente aquele olhar, ou tentava evitá-lo. O menino passou todo o ensino básico assim. Na esperança de que um dia ela retribuísse aquele olhar com alguma palavra. Terminou a escola. Nunca mais eles se viram. Até que um dia. Num supermercado. Os dois já bem crescidinhos. Se esbarraram. A menina disse "oi" para o menino. E escandalosamente pronunciou seu nome. Foi só isso. Depois ela se afastou com o carrinho. Mas era como se tivesse selado o segredo dos dois. Ele ficou feliz. Mas também arrependido de não ter tentado nada na época. E agora prometia a si mesmo nunca mais deixar de tentar. Mas aí ele já era um homem. E essa promessa entrou na lista de promessas que um homem faz a si mesmo. E que nem sempre cumpre.
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