quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Pac-Man

Ele me segurou pela camisa e disse: as pessoas odeiam os seus trabalhos! Disse isso com os olhos em chamas. Ele tava bêbado. Bebe e assiste aos jogos do Flamengo nos bares. Ele me disse: você faz o que quer! Ele é professor de geografia, mas trabalha com informática. Pois dá mais segurança do que dar aula em escola pública para meia dúzia de delinquentes. E ele continuou: eu odeio o meu trabalho. E fico rezando para o tempo passar. Ele conserta computador na casa de velhos militares. Eles dizem: a ditadura era boa. Ele diz: não. Opa. peraí! Começa um discurso e eles se impressionam com a sua elucubração. Ele diz: eu te invejo. Você é forte. Eu digo: também não é assim. Pago o meu preço. Ele me diz: não tem espaço pra gente como você na escola. A sociedade não sabe lidar com gente como você. Ele continua: cara, quando toca o telefone no meu trabalho, eu já fico preocupado. Eu só não quero que interrompam o meu Pac-Man. Só isso que eu não quero. Que interrompam o meu Pac-Man!

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Eu Só Não Quero Voltar Pra Rua

Ele é um homem alto e forte. Com olhos fundos e feições índigenas do Norte do Brasil. A pele tem a cor do cobre. Seria facilmente confundido com um garimpeiro de Serra Pelada. Ele diz: eu só não quero voltar pra a rua. Eu já morei na rua. Tudo bem. Não tinha inimigos. Quando eu acordava escondia o meu cobertor em cima da árvore. Tomava café no posto. Mas sei lá. Não quero morar na rua de novo. E se acabarem com aquele restaurante de um real vão me quebrar. Vai ser mais gasto com supermercado. Aquela comida é feita por nutricionistas. Eu tenho uma vida boa, rapaz! (aqui ele fica exaltado). Tenho uma qualidade de vida excelente. Tem gente que tem dinheiro, mas não tem qualidade de vida. É o que eu converso com a minha assistente social. Todo dia eu malho. A minha glicose está equilibrada. Eu sempre pago o meu quartinho adiantado. Só que se cortarem o meu benefício vou ter que morar na rua de novo. E eu não quero voltar pra rua.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Cenouras Hipócritas Ou Brasileiro Insensível

Vi aquela moeda de um real em cima da mesa. Ela estava solta e separada das outras. Fiquei com pena dela. A gente nunca sabe quando vai precisar de um real. Passa pra cá. Ela deu um pinote pro bolso. Era hora de passear e ela se acomodou ali embaixo da carteira. Na rua da feira um cara me parou: tem um real pra pinga? Gostei da atitude do bruto e arremessei a maliciosa para o ar. Ela girou. Ele estava com a mão aberta. A bicha caiu na palma da mão dele. Parei para comprar legume. Pensava na vida enquanto olhava aquelas cenouras hipócritas. Uma menina parou do meu lado. Tio compra bananada. Balancei a cabeça dizendo que não. Ela insistiu na esperança de me deixar sem graça. Tio compra bananada. Automático disse: não, obrigado. Eu já havia dado a minha reserva para outro tomar cachaça. Ela era uma criança fofinha. Daqui a pouco aparecia alguém disposto a ajudar. O cara da barraca me olhou de cara feia. E disse a ela: toma um real pra ajudar. Eu sou um brasileiro insensível.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Rebuçado

Ele diz: eu fumo para aliviar a minha dor. Eu sinto muito dor. Eu já o ouço dizer isso muito antes dessa moda de fins medicinais, marcha e essa coisa toda. Contemplando o cais fedorento da favela ele diz: eu fiz tanta merda. Roubei. Trafiquei. E não aconteceu nada. Mas fiquei desse jeito de bobeira. Eu tava no ônibus vindo do baile, e veio essa bala de fora. Até hoje não sei quem atirou ou por que. Ele sempre conta essa história entre uma baforada e outra. 

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

O Livro

Eu comprei o livro. O meu irmão mais novo quis ler. E disse a namorada: leia também. A mãe da menina leu o livro nas tardes em que não tinha o quê fazer. Embora fosse um livro adolescente. A menina que agora era ex-namorada do meu irmão, quando se mudou teve que doar os livros para a biblioteca pública por falta de espaço em casa. Um menino que fazia o trabalho de escola tirou o livro da estante. Gostou da capa e do resumo, e fez uma ficha na biblioteca para pegar o livro emprestado. A irmã dele começou a ler o livro. Eu comprei o livro novamente num sebo do centro da cidade.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Tendenciosa

Ela subiu me olhando. Não pude acreditar. Roleta e trocador. Fiquei sem graça. Tentei disfarçar. Uma senhora com setenta anos ou mais. Ela pagou a passagem e eu pensei. É óbvio demais que pare aqui na minha frente. Não teria coragem. Ela irá sentir-se envergonhada. Mas eu tava enganado. No momento em que acabei de tirar a biografia de um dos escritores que mais gosto da mochila, ela encostou. OK. Levantei e dei o lugar. Ela: obrigado. E se ofereceu para segurar a minha bolsa. Grato. Sei que se estivesse em pé, provavelmente ninguém iria segurar nada. Na minha cidade é assim. Mas se ela andasse mais um pouco teria outra pessoa. Qualquer um com menos de sessenta anos daria lugar a ela. Achei a escolha... Tendenciosa. 

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Favela Ocupada

Favela ocupada. Ele tava parado em frente a sua casa. Acabou de fumar. Veio um soldado e disse: pô aí tu num tem um baseado desse pra me arrumar, não? Ele gelou. Mas falou: tenho. Entrou em casa rapidamente. O soldado esperando. Ele suava com medo de que fosse uma armação. Mas se fosse não teria jeito mesmo. Era melhor arriscar. Entrou em casa e pegou um baseado. Deu para o soldado que falou: com todo respeito, sem querer abusar, não tem uma seda aí não, irmão? Tenho. Ele entrou em casa de novo. Saiu com a seda. Deu para o soldado. O soldado falou: valeu... E saiu andando. Ele respirou. Alívio.