sábado, 26 de dezembro de 2020

Eu Vi o Paul McCartney no Metrô...



Ninguém deu bola. Estava ali sentado lendo, e se espremeu como todo mundo na hora da saída. Deve estar curtindo um pouco a vida depois daquela loucura de beatlemania. Voltou a ter um cotidiano normal. É uma pessoa comum, agora. Mas será mesmo? Ou ele ainda é o Paul McCartney que faz parte da história da música mundial? Na saída da estação o vi se afastar tranquilo com a sua bolsa a tiracolo e o seu jornal. Coincidência ou não, “Drive My Car” tocava num desses carros pretos enormes, ocupando espaço, fazendo barulho, e poluindo a cidade.

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Mais um Dia de Verão...


A brisa que passa, na beira da praia, no rastro da onda do mar

Deixando um lastro, de luz solar

É um atropelo, do que está para chegar

O destempero, que vem acomodar

Dentro do quarto, no escuro da tela, eu quem te vejo dormir

A visão mais bela, daqui da janela, é sempre você a sorrir

Futuro sem trela, numa esparrela

Todo o prazer vem daqui

Vamos mergulhar na escuridão do mar

Fazer amor até o dia raiar

Em teu calor e sem saber nadar

Chegar tão fundo até o sol brilhar

A vida que resta, a tarde da sesta, é mais um dia de verão

A sua mão destra, a rede na aresta, o rés desnível do chão

Biquíni aperta, eu quem não presta

Você chamando a atenção

Todas as férias, com alguma féria, então será sempre assim

Na casa fresca, de segunda a sexta, dentro do meu pixaim

Com ânimo dobre, você quem resolve

Por mim nunca mais vai ter fim

Vamos mergulhar na escuridão do mar

Fazer amor até o dia raiar

Em teu calor e sem saber nadar

Chegar tão fundo até o sol brilhar

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Nelson e Otto...

             Esses dois sujeitos mal-ajambrados caminhavam numa rua do centro baforando os seus mata-ratos importados do Paraguai, quando uma viatura apinhada de policias com braços e armas de fora se aproximou. Uma voz gritou: “Polícia!” Nelson comentou entredentes para Otto: “Como se a gente não soubesse.” O policial ao sair do carro disse para os dois – Documentos! - Nelson se preparava para pegar a carteira no bolso detrás da calça, quando ouviu a pilhéria do amigo – Só temos instrumentos… – o policial se virou para os dois irritados.

 – O que foi que disse cidadão? – Eu disse que está aqui. Otto respondeu enquanto o amigo suava frio. O homem perguntou: “Vindo de onde indo para onde?”, “Atrasados para uma entrevista de emprego, doutor.”, “Tem certeza de que estão procurando trabalho?” o policial franzia o cenho enquanto conferia os documentos. De repente os outros policiais acenaram para que o colega se fosse. Devia ter surgido alguma ocorrência. O soldado devolveu os documentos e disse: “Se adiantem cidadãos!”

Os dois chegaram ao rabo da fila que dava volta no quarteirão. Homens e mulheres com expressões cansadas e olhares sonolentos. Nelson disse para o amigo: “Mas Otto, como aquele policial pôde me chamar de cidadão se o meu auxílio é tão pouco?”, “É mesmo, como é que pode?” o amigo respondeu enquanto mais gente parava atrás deles. O senhor que vendia cafezinho cochilava com a TV ligada. Uma mulher próxima abria a boca num bocejo.

Na televisão um político dava entrevista num desses jornais que pegam o trabalhador ao sair da cama. Ele dizia: “O homem da rua sabe do que eu estou falando!” Nelson tentava acender a guimba quando disse – Otto, será que quando fala sobre o “homem da rua” ele está se referindo à gente? - “Creio que sim, Nelson. Creio que sim.”, “Otto, o que você prefere, ser um homem da rua, ou um cidadão?” Otto como um personagem de novela coçou o queixo antes de responder: “Nelson, com sinceridade. Eu acho que prefiro ser chamado de cidadão. É mais moderno!”

As vagas oferecidas não passavam de setenta, mas havia um mar de pessoas encostado naquelas paredes. Foi quando apareceu um morador de rua. Ele carregava sua sacola nas costas, e era uma espécie de “homem do saco” com o qual as mãos atemorizavam as crianças antigamente. Usava barbas longas e estava todo sujo. Parou à frente da fila na altura em que os dois amigos estavam e disse – Vocês só querem trabalhar com a caneta… Na pedreira tem vaga! - parte dos desempregados desabou numa gargalhada contagiante. Nelson comentou com o amigo – Otto, olha como é o humor do povo brasileiro! Mesmo na desgraça ele faz piada! Olha a veia cômica do brasileiro!”, Otto perguntou: “Mas então Nelson, o que você prefere: homem da rua? Homem do povo? Ou Cidadão?” Nelson pensou um pouco e respondeu - Eu fico com homem do povo. Sei lá, soa mais original!

Um helicóptero de noticiário da manhã sobrevoava o lugar onde estavam como que para fazer alguma matéria. Desceu de um carro o homem de óculos; celular numa das mãos, e uma revista Piauí na outra. Ele se dirigiu a eles - Os senhores podem me informar que fila é esta aqui? - Nelson mais escrachado respondeu: “Só se o senhor emprestar a revista para passar o tempo!” O homem entregou a publicação mensal sem pestanejar. “É uma fila de emprego para faxineiros de uma cadeia de lojas.” O sujeito falou no aparelho espreitando a aeronave: “É uma fila de emprego.” Eles ouviram a voz do outro lado – Os populares disseram isso? - Sim! ele respondeu e partiu.

Agora Nelson e Otto estavam vidrados na revista. “Então Otto, nós somos cidadãos, homens da rua, homens do povo, ou populares?”, Otto respondeu: “Eu acho que nós somos isso tudo, Nelson!” O amigo disse: “É por isso que te admiro, Otto! Você representa a inteligência brasileira!”, “É, mas agora para que ela seja mantida necessito de um café.” Nelson contou as moedas e viu que a quantia estava certa para a passagem da volta. Então leu uma frase na revista, se virou para Otto e disse: “Imagine-se num barco num rio com árvores de tangerina e céu de goiabada!” Otto lendo a revista respondeu por sobre os seus ombros: “E bebendo tubaína!”. Nelson ao perceber que o amigo descobrira o plágio disse: “Otto, ainda serei um frasista como você!”. Nesse momento um funcionário da empresa apareceu - “Vamos organizar a fila!”, “Amém!”, disse uma voz sufocada por uma máscara.

 

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Emanuel e Isabela...


Emanuel era um cachopo de Abrantes…

Era um puto diferente dos restantes!

Enquanto todos só falavam de internet e outros bichos

Emanuel sempre dizia: por aí, mas nem por isso!

Emanuel escrevia, e lia poesia

E discutia sobre tudo, mesmo, até filosofia

Emanuel era um cachopo de Abrantes…

Dos antigos dos que existiam antes!

Emanuel era um tipo muito louco diferente

E sabia lidar, lidava com toda a gente

Da Doutor Manuel, da ESTA, da Solano

Emanuel era DJ, e tocava piano

Emanuel era um cachopo de Abrantes…

Bastante sossegado, e contagiante

E ele se apaixonou pela linda Isabela

E disse a ela: rapariga tu és bela!

Comparou a sua beleza com os jardins da fortaleza

Usava um vocabulário, abissal, da profundeza

Emanuel era um cachopo de Abrantes…

Com uma miúda apaixonante!

Emanuel mostrou a ela como o tempo se divide

Eles assistiam séries e caminhavam ao ar livre

Gostavam de jogar, mas amavam a cultura

Inclinados ao teatro, ao cinema, e a leitura

Emanuel e Isabela de Abrantes…

Coração lapidado em diamante!

Emanuel e Isabela com planos para o futuro

Um casal de miúdos e um sentimento puro

Ninguém duvidava que eles fossem ficar juntos

E hoje por onde passam continuam sendo assunto

Emanuel e Isabela de Abrantes

Emanuel e Isabela de Abrantes


Imagem: CM Abrantes

sábado, 26 de setembro de 2020

Mídia-Golpista e Globo-Lixo!

Eu estava neste boteco da Rua Montevidéu na Penha às sete horas da manhã tomando uma Brahma quando ele chegou com o dedo em riste. — Os petistas inventaram a “Mídia-Golpista”, e agora os bolsonaristas a “Globo- Lixo”. Os dois grupos pelo mesmo motivo: denúncias de corrupção. O Lula populista se beneficiou do Bolsa Família; que aliás era um dinheiro irrisório. E agora o Bolsonaro se beneficia do Auxílio Emergencial. Ele que não queria ajudar na pandemia acabou sendo beneficiando por ela. Bolsonaro ia dar duzentos; quando alguém disse que era muito pouco. Ele aceitou contrariado. E o povo acredita que o “capitão” — expulso do exército — num gesto de benevolência saca a grana do próprio bolso. Como se o Brasil (“negacionista”) fosse o único país do mundo com medidas emergenciais; e como se ninguém pagasse imposto ao comprar uma mariola… Tomara que depois dessa paixão o amor acabe; e assim como aconteceu com o Collor e a Dilma (que caíram por infrações menores que as que ele comete, nunca é demais lembrar) tudo termine em impeachment. O homem pagou a Coca-Cola, pegou a bíblia de cima do balcão, e disse: “Agora tenho de ir para o culto irmão. Na paz do senhor!”, eu respondi — Na paz do senhor! E voltei a assistir a Globo.

sábado, 12 de setembro de 2020

Eu Nasci em Mil Novecentos e Setenta e Sete!

Eu nasci em mil novecentos e setenta e sete!
É por isso que não me entrego a esse mundo da internet…
Eu nasci em mil novecentos e setenta e sete!
É por isso que eu leio livros inteiros
E ainda ouço álbuns completos
Eu sei o que é uma câmera Rolleiflex
Fui eu quem descobriu o Basic e o disquete
Eu nasci em mil novecentos e setenta e sete!
Foi por isso que eu não nasci adulto,
eu tive infância
Eu que nem sempre sou velho, 
também já fui criança
O meu pensamento pertence a outro tempo
O meu raciocínio é mais cadenciado,
E não mais lento!
Eu não vivo em busca de passatempo
O meu tempo passa em busca de conhecimento
Eu nasci em mil novecentos e setenta e sete!
Por isso que dou valor a coisas que você desconhece
E ignoro outras com as quais toda a gente se diverte
Eu não sinto saudades da época em que eu nasci
Mas sou muito grato ao tempo em que eu cresci
E você que não aprendeu a ler
E você que não aprendeu a escrever
Ainda vem me dizer em sua postagem como eu devo viver
Faça-me o favor!
Eu nasci em mil novecentos e setenta e sete!
É por isso que eu valorizo coisas que você desconhece
Mas quem nasceu na minha época às vezes se esquece
Eu nasci em mil novecentos e setenta e sete!
Dou tempo ao tempo
E a cada tempo o tempo que ele merece
Porque eu nasci em mil novecentos e setenta e sete!

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

José Terra e o Senhor Smithers

Infelizmente José Terra Periquito era um homem feio. Ele se parecia com o senhor Smithers de Os Simpsons. Semelhança esta que provocava risos em alunos de faculdades onde ia dar palestras. “Ele se parece com o senhor Smithers.” Precisava constatar se a semelhança era real. Fez uma busca no Google e se deu conta da triste coincidência. Os olhos esbugalhados encovados em órbitas de olheiras profundas e a careca saliente não deixavam dúvidas. Interpelou um amigo e confidente. Fernando Henrique Manhoso foi sucinto em sua resposta: “Parece sim.” Depois de exibir a figura de Smithers pôs o aparelho de volta ao bolso e não esqueceu do assunto.
Com o pensamento científico decidiu aceitar o infortúnio da aparência. Aquele era mais um dos sorteios da natureza. Nem todos possuíam a sorte de ser um privilegiado ao qual a estampa servisse para cartazes de Hollywood. Em seu carro ouvia alto a polêmica música da banda Ira! que dizia não querer mais ver aquela gente feia em São Paulo. Isso dava a ele a sensação de não ser um deles. Mas sabia que era como a maior parte dos simples mortais brasileiros que ou se habituavam ao seu destino ou passariam a vida toda sonhando com procedimentos estéticos em clínicas clandestinas de fundo de quintal que invariavelmente terminavam em morte. Não era o seu caso. Já havia dado provas de ser resiliente em muitos aspectos da sua existência. No debate político partidário o seu tom de voz pausada e o seu manejo para negociações haviam conquistado a confiança de aliados e correligionários.
Sempre que José Terra tinha algum pesadelo, ele cria ser um aviso e temia que o dia não corresse bem. Em seu carro ouvia escondido músicas que os amigos da mesma geração e classe que ele não entenderiam. Naquele dia, por exemplo, ao adentrar a rua engarrafada onde a filha morava cantava o rap dos Racionais que dizia: “Tem dia que é melhor não acordar que dá tudo errado.” O dia transcorria modorrento com uma garoa fina. Aquilo era um mau presságio assim como em sua concepção o famoso fog londrino. Na fila de carros José Terra suspirava e lembrava do sonho. Em sua quimera onírica da noite, um japonês dentro de um carro preto tirava os óculos escuros do rosto. e dava diversas piscadelas em sua direção. Sonhou com isso à noite inteira. Sempre a mesma cena a se repetir como num loop ou um samples do rap que curtia às escondidas.
Pensou que o congestionamento se desse por uma operação de combate ao Coronavírus, “Se eu fosse o ministro da saúde nada disso estaria acontecendo! Mas puseram um imbecil na presidência da república!” Ao perceber a aproximação de um dos guardas abaixou o som. Tirou a música dos Racionais e pôs novamente o Tchaikovsky. Ele sempre fazia isso. Quando alguém se aproximava, José Terra sacava a música clássica ou um clássico da MPB como Chico Buarque. Nada daqueles raps e rocks malucos que ouvia. Ele sorriu para o guarda que passou direto ao largo do seu carro.
 O seu automóvel já estava parado ali há um quarto de hora sem conseguir se aproximar da casa da filhota como ele chama a filha. “Meu Deus como é difícil ser tupiniquim, dai-me paciência senhor!” José dizia ao abaixar a cabeça apertando o volante do carro. Quando entrou uma mensagem no celular: “Pai, o senhor já está vindo?” Ele respondeu: “Engarrafamento na sua rua.” – “Ah, meu Deus!” a filha devolveu. José Terra resolveu telefonar. A filhinha atendeu. “Vem logo pai.”, “O que aconteceu?” “Vem logo”. Não disse mais nada e ela desligou o telefone. Não devia ser um problema de foro íntimo e sim uma jurupoca em seus negócios. “Vou andando.” Ele decidiu. O atraso do país José.
José Terra desceu do carro na esperança de que alguém o reconhecesse e fosse facilitada a sua passagem. Enquanto se dirigia ao tumulto viu muitos carros da polícia próximo ao muro da casa de sua filha. “Algum vizinho deve ter feito asneira”, pensou. Ele se aproximou como quem se exibe para ser visto. Novamente lembrou os Racionais. “Quem não é visto não é lembrado.” Ninguém na pequena multidão que se formava reconheceu a sua caroça, como diria um integrante da plebe rude. Ele lembrava da banda de mesmo nome.
O máximo foi um garoto que cutucou a mãe: “Parece o senhor Smithers!” A mãe respondeu: “É mesmo! Igualzinho!” Ele fingia não ouvir, mas em seu íntimo pensava “Esses bárbaros só conhecem o Caneta Azul e a Anitta!” José Terra perguntou a um homem: “Com licença, o senhor sabe o por que da confusão?” No que o popular com o jornal debaixo do braço respondeu: “Um figurão da política foi pego com a boca na botija, e a PF está na casa da filha dele!” Depois de ouvir a frase entrou uma mensagem em seu celular. “Pai chame os advogados!” Ele correu para o carro.
“Aí meu Deus prenderam a minha Periquita!” Agora José deu meia volta embicou o carro na direção contrária e pôs a gravação de Paulo Diniz, baseada no poema de Carlos Drummond de Andrade, que seus amigos julgavam popular demais. A Festa acabou, a luz apagou, o bonde não veio. E agora, José?