sexta-feira, 30 de março de 2012
Quando Mataram o Meu Irmão Mais Velho
Eu tava no banheiro mijando. Não aguentava mais esperar na
sala. Quando começou a gritaria. Foi insuportável. A mulher gritou muito. Eu
ouvi os estalidos secos. E fiquei paralisado lá dentro. Desesperado. De repente
ouvi a porta bater, e os passos apressados na escada. Quando consegui sair, o
AP tava todo arreganhado. Ela me olhava sentada no assoalho, com um choro agudo, e
quase inaudível. Pelo rastro de sangue no quarto em direção à janela, eu já
sabia o que havia acontecido. Desci as escadas, e vi o corpo sem vida, com as
pessoas olhando em volta. Fui saindo de fininho me arrastando até o ponto de ônibus. E
rezando pra ninguém me chamar. E o meu corpo ficou tão pesado, que ainda hoje tenho
a impressão que continuo naquele lugar.
terça-feira, 20 de março de 2012
A Invenção de Santos Dumont
Ele tinha uma porção de aviões. Era obcecado por aeronaves.
Juninho tinha uma coleção inteira. A mãe dizia: Juninho é louco por aeroplanos...
Esse menino vai ser piloto! E todo mundo só dava a invenção de Santos Dumont
para o moleque. No aniversário, dia das crianças e natal. Juninho ainda ia
fazer cinco anos, e mal sabia falar. Mas era capaz de soletrar o nome de todo modelo que via no céu. Um dia antes de dormir ele perguntou a mãe: cadê a vovó e o vovô?A mãe
disse: o avião levou os dois pra casa deles. No dia seguinte, quando Juninho
acordou, a primeira coisa que ele fez foi deitar abaixo a estante com a coleção
de aviõezinhos. A mãe perguntou: porque
você fez isso, meu filho? E ele disse: porque o avião leva embora todo mundo que eu gosto!
terça-feira, 13 de março de 2012
O Escritor
Ele não bebia e não fumava. E nem sabia o que era droga. E também
era de um ceticismo fervoroso. Não acreditava em deuses ou demônios. Nem
de onde nós viemos ou para onde nós vamos. Nada. Extraterrestre. Sorte. Azar. Destino. Nada. Morreu, acabou. Ele dizia. Um dia
contestado, e os sonhos? O quê você acha dos sonhos? Coisas da nossa cabeça. Coincidências.
Outro dia ele estava saindo de uma livraria, quando se deparou com dois de seus personagens. Eles eram tão de carne e osso que um deles disse:
obrigado por tudo! Ele gelou. E depois se perguntou: porra, será que eu to
perturbado? Enquanto se afastava os dois permaneciam lá parados. Ele continuou sem
acreditar em deus. Mas passou a acreditar em tudo. E todo mundo deixou de acreditar nele.
sábado, 3 de março de 2012
Pirataria é Crime!
Eu tava ali naquele bar com o cotovelo no balcão. Esperando alguém
enquanto a cerveja esquentava. A minha vida é esperar. Quando chegou esse
moleque. São os últimos, ele disse. Com todo o respeito, amigo, só pra fechar o
dia do vendedor... Ele não deve ter dezoito anos. E eu penso que se tivesse
essa lábia era prefeito dessa cidade. Dá pra se ver que é um fodido, mas que
“vai se dar bem na vida!”, como dizem. Independente do que isso signifique. Ele
mostra uma coleção de filmes que me provocam tédio. Mas alguns DVDs de música
interessantes. Quando o dono do bar que limpa o balcão diz: pirataria é crime! E
eu fico a me perguntar, embora particularmente não tenha nada contra álcool e a
nicotina, porque o dono do bar se sente menos prejudicial que o pirata? E
quando um CD do Michel Teló vem parar numa das minhas mãos, ouço o moleque
dizer: Pirataria é o crime perfeito!
sábado, 25 de fevereiro de 2012
É um Mentiroso!
Não lembro exatamente quando ele começou mentir. Mas
me lembro de ouvir alguém dizer: ta mentindo. No começo pensei que ele tivesse
apenas contando uma vantagenzinha. Normal. Então de repente aquilo se tornou uma obsessão. E nessa altura do
campeonato as pessoas se perguntavam: porque mente, tanto?! Os amigos ricos e
imaginários se multiplicaram em suas estórias. E as beldades também. E se você dizia ter ido a algum lugar. Ele também tinha ido lá. Se você dizia ter feito algo. Ele também
havia feito. E alguns diziam: é esquizofrênico! Mas o pai bufava: se fosse
maluco não me pedia dinheiro! Até que veio o dia fatal. Ele tava falando com
alguém muito importante no celular. Como sempre tava falando com alguém muito importante no celular. Eis que de repente o telefone toca. Toca em seu ouvido.
E toda a plateia fica sem graça, por ele. E eu tive a certeza: é um mentiroso!
domingo, 19 de fevereiro de 2012
Um ou Dois Contos
Eu tava na casa dele. E lá é tudo sujo, jogado e quebrado. Ele
mora num buraco e trabalha varrendo aquelas ruas sujas. Do lado de fora existe
um armamento pesado de guerra. Crianças, mulheres e homens que vivem no meio do
lixo em função do deus crack. E meninas que se prostituem por um ou dois contos.
Roubam qualquer coisa. Comem qualquer coisa. E sempre me lembram zumbis sem
vontade própria. Quem me levou naquele lugar não interessa mais. E sim a propaganda
que fez sobre aquele homem. O barraco parecia uma casa de ópio de tanta
fumaça. Eu li parte do meu livro pro homem que ouviu com o olhar mais sereno
que já vi. Nunca ouvi um silêncio tão respeitoso. E o riso no canto da boca e
dos olhos era de quem tava gostando muito. Todo homem do pensamento é assim
igual a você, ele disse. Não entendi a frase, mas senti que era algo
maravilhoso vindo de quem vinha. E respondi: tem o lado bom de quase ninguém ter
acesso ao que eu escrevo, ou ouvir as minhas músicas; que assim eu posso fazer
aquilo que realmente gosto de fazer. Ele disse: é isso aí. Temos que fazer o
que deve ser feito. E me olhou como se a gente não tivesse conversando em clichês.
Logo assim que entrei naquele ambiente pensei que ele não devia ter nada a me
dizer. E ele não me disse quase nada. Mas fiquei com a sensação de ter
conhecido um homem sábio. E não entendi aquela serenidade no meio daquele
inferno.
terça-feira, 14 de fevereiro de 2012
Quatro Cervejas Bem Geladas
Eu tava no fundão do ônibus. Vinha meio sonolento nesse calor dos
diabos que ta fazendo no Rio. Quando olhei pro lado. Pra fora da janela. Vi aquilo
que parecia parte do sonho que tava tendo. Era, ela, mesma. Sentada numa mesa as
três da tarde do horário de verão. Nada de anormal. Desci do ônibus puto e
corri em direção ao boteco que fica naquela praça perto do hospital. Eu perguntei
a ela: que porra, é essa? Ela respondeu: cerveja. Ela tava sozinha. Eu tentei
olhar em volta pra ver se existia alguma explicação praquilo. Olhei pro
atendente que passou a toalhinha no rosto pra limpar o suor. Ele nem me deu bola.
Eu disse a ela: garota, quatro garrafa, já?! E ela: quem é você pra falar? Ela se
referia ao baseado encontrado no quarto da minha mina. Eu tava vindo do trabalho,
cansado, sujo, suado. Ela tava de camisa da escola. Eu disse: e-a-porra-da-escola? E ela: eu matei aula. E completou: a tua mãe sabe. E grogue repetiu:
quem é você pra falar? E passou o batom na boca. Essa situação era pra ser
normal. Se ela não tivesse apenas catorze anos. Eu desisti e fui andando
por aquela rua da academia.
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