quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Poodles

A menina mergulha na lata de lixo. O moleque espera. Deve ter alguma coisa que preste ali. Tudo é lixo naquele lugar. Um cenário de guerra, com homens mutilados e cadeiras de rodas. Ele assiste a cena de dentro do ônibus. Tem uniforme, crachá, carteira assinada, e um tasco de um baseado dentro do bolso. Não dá nem pra dar onda, ele pensa. Blitz. Um policial sobe no lotação. Quando vê o cachimbinho de crack, sujo e enferrujado do moleque, ele diz ao policial: aquele menor tem um cachimbo. O policial responde: não te perguntei nada! Ele se cala. Depois diz: o Brasil não vai melhorar, eu tenho certeza que o Brasil não vai melhorar... Quem disser isso tá mentindo. O Brasil vai explodir e nós vamos morrer aqui dentro. Ele diz isso olhando para os outros passageiros que se assustam. O policial ignora dessa vez. Depois ele se lembra do poodle e fala: eu queria ser uma porcaria de um poodle. Alguém já viu como essas madames cuidam deles? Eles têm até sapatinhos para não pisar no chão. Eu queria ser a droga de um poodle daqueles. O policial diz: você quer calar a porra dessa boca?! Um dos policiais revista a mochila de um homem que subiu naquele ponto, e que vai perder 50 reais daqui a pouco. A menina saiu do lixo e disse para o menino: nada! O motorista dá a partida. E ele diz baixinho... Um poodle... A droga de um poodle!

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Porquês Inúteis

Seu Zé era um velho que tinha um bar com fliper na praça. Todo mundo que jogava ali morreu de tiro. Quando meu pai me pegava lá dentro enchia o meu saquinho. O Seu Zé andava de motinha com as mercadorias amarradas. E ele mesmo dizia: essa mer... cadoria! As vezes eu pagava e dizia: obrigado. E ele: você quer brigar comigo, rapaz?! E no dia em que o moleque disse: esse lugar não tem nada, que lugar amaldiçoado! Ele Respondeu: vira essa boca pra lá, rapaz! O Seu Zé levava as palavras ao pé da letra. E ele é tão presente com o seu cuidado com elas, que eu estava aqui escrevendo, e me lembrei dele ao perceber esse bando de porquês inúteis.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

A Vida Literária

Ele olhou para a tela do computador. Talvez tenha tido um “bloqueio criativo”, como dizem àqueles escritores que nunca tem o que dizer. E o papel que não é papel ou a folha que não é folha, em branco, na tela. E pensou. Pro diabo! Não sou obrigado a escrever essas porcarias... Pegou uma música que não saía da cabeça, e saiu assobiando. Viu a pichação de parede. A sujeira dos garis. A fumaça que os carros soltam com a expiração. Os camelôs repletos de DVDs piratas. A criança com cara e uniforme de escola pública. O solzinho que há dias não dava as caras. E pensou. A vida continua literária.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Como Se Samuel, Fosse Eduardo

Eduardo chamou Samuel. Samuel. Vamos à outra rua? A outra rua é a rua paralela a rua de paralelepípedo em que eles moram. Samuel disse: não. Eduardo disse: tá. Samuel não quis ir não sabe nem por que, se sua mãe nem estava lá. Mas simplesmente não quis brincar. Preferiu assistir desenho. Eduardo atravessou aquele corredor imenso, e cheio de casinhas, que dá para outra rua. A senhora que estava no tanque viu Eduardo passando. Se o corredor estivesse cheio, talvez ele parasse para conversar com as outras crianças. Mas àquela hora estava vazio. Ninguém havia chegado da escola, ainda. O caminhão. Samuel só ouvia falar daquele caminhão. Ele ainda ia ouvir falar muito daquele caminhão, que nunca viu. E talvez crescesse, e o caminhão, quem sabe. A mãe de Samuel ao chegar do trabalho abraçou o filho e beijou de maneira que ele nunca viu. E depois ela o puxou para aquela casinha do corredor ao lado, em que Eduardo vivia com a mãe e o pai. Samuel teve que contar a ida de Eduardo a sua casa mil vezes. E nunca esqueceu a maneira como a mãe de Eduardo o abraço e beijou. Como se Samuel, fosse Eduardo.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

O Meu Blog É Um Deserto

O meu blog é um deserto. Túmulo desértico. Triste como a caatinga. O sertão. O árido e o semiárido. O meu blog é uma solidão. Lotado de textos que ninguém lê. Ou quase, ninguém. Alguns entram aqui por acaso, procurando alguma coisa no Google. E ainda saem irritados, pois a palavra chave é a mesma; mas o assunto, não. Milhares de textos dentro do computador. No armário. Quem sabe obras póstumas pelas mãos de algum parente atencioso. A internet é um universo. E dentro desse universo tem um lugar que é o meu blog. Terra improdutiva. Elefante branco. Numa solidão só. Igual milhões de outros blogs. Sem consolo.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

No Meio do Dilúvio

Ela diz algo para todo mundo na fila. Ninguém dá a mínima para o quê diz. Todo mundo só está preocupado com a própria vida. Tudo é mais importante. O time. A festinha de aniversário do filho. A ração do cachorro. Todo mundo tem com quê se preocupar. De repente dá um trovão e desce uma pancada de chuva do céu. Eu também saio correndo para me abrigar embaixo da marquise. E no meio do dilúvio, a velhinha maltrapilha diz: eu avisei que o meu pai ia pegar vocês...

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Boca-Podre

Ele é barbudo. E treme. Treme sempre que bebe, ou antes, de beber. Mas treme. Os meninos gritam para ele: Boca-Podre! Ele tem os dentes estragados. É magro. E a mãe de olhos fundos, todo o dia faz um tour pelos bares atrás dele. Mas nem sempre foi assim. Dizem que era engenheiro e coisa e tal. Uma tia minha diz: ih, ele era bonito! E o meu tio: a noiva do Boca era um pitéu... Então ele foi derrotado ou desistiu de lutar? Não sei. A história que contam é que ficou assim por causa dessa menina. Uma ingrata que o abandonou na porta da igreja. Assim mesmo. Igual em novela. E o Boca-Podre não soube administrar o vexame perante a comunidade. Mas quando eu o vejo, tento visualizar a cena do Boca chegando do trabalho, e passando na casa da namoradinha para dar um beijo. Mas confesso que é difícil imaginar isso. Muito difícil.