segunda-feira, 13 de abril de 2020

O Acossado de Jean-Luc Godard...


O Acossado
é um sampler de rap. Um groove de funk. Uma frase de jazz que se repete. Assim como o gesto de Humphrey Bogart nos lábios de Jean Paul Belmondo; os cigarros que Michel fuma insistentemente acendendo uns nos outros ou as perguntas que Patricia faz sobre o significado das palavras em francês. O Acossado é um jump cut sem raccord. Nem mesmo os diálogos na boca dos personagens são finalizados. Eles pulam de um assunto para o outro. Algumas vezes nem concluem o que disseram. O Acossado é uma colagem. Ali é possível ver o Dziga Vertov. O cinema clássico americano. O cinema noir percebido primeiramente em França com o seu anti-herói de passado obscuro, e sua femme fatale. Embora Patricia se pareça mais com as adolescentes entediadas de Salinger. Tédio que aliás protagoniza ao dizer que não sabe se é triste por não ser livre ou se não é livre por ser triste. É o existencialismo da sua geração apoiada por Sartre e Camus. Com vinte anos divaga sobre morte e velhice. Com a sua morte precoce a atriz Jean Seberg parece ter cumprido o destino de Patricia. Dizem que perseguida pelo FBI assim como Michel perseguido pela polícia francesa. Morreu cedo e disse que não foi feliz no amor. Eles têm muito da geração perdida dos Fitzgerald`s. Dos Kerouac´s. Como Martin Scorsese disse: é beat demais! O Acossado é um clichê. Um pastiche. Não é um plágio. Cumpre o seu papel de reinventar a partir da tradição. Não é uma ruptura total. Godard exalta o passado ao criar o novo. Não teme o antigo. Michel é desengonçado. Um herói magrelo. Ele não é o galã que sonha ser. Tanto é que um de seus pares diz a ele que meia de seda não combina com casaco de tweed. Assim como Carmen Miranda, Godard não temeu voltar americanizado. Ele desconstruiu para reconstruir Hollywood. Caetano Veloso canta sobre a vontade “fela da puta” de Raul Seixas de ser americano. Michel vai realizar o seu sonho, se Patricia, a menina americana, ficar com ele. E se junto eles forem para a Itália. É lá que está a felicidade. A felicidade sempre está em outro lugar. Michel é a personificação universal do malandro; num momento representada pelo capoeira carioca do século dezenove, no outro pelo compositor de tango do Rio da Prata, e até por Barry Lyndon na literatura. Patricia é o retrato da geração que foi emancipada por um trabalho longo de outras gerações e que percebeu como é chato crescer, pois nem sempre sabemos o que fazer com a liberdade. Michel quer Patricia. Mas ele diz que ela é igual as outras. Passa a mão em sua bunda. Leva tapas. Quer dormir com ela. Pula de uma mulher para outra. Michel avalia as suecas, italianas e brasileiras. Levanta a saia de uma mulher na calçada porque Patricia chamou as francesas de putas por usarem saias curtas. E diz que as mulheres não gostam de quem gosta delas. O romancista Parvulesco diz que existem duas coisas vitais no mundo: “para os homens são as mulheres, e para elas, o dinheiro.” Patricia não tem certeza se quer ficar com Michel. Não dá garantia nenhuma. Quer algo como Romeu e Julieta, ela diz. Patricia é da geração que vai desembocar no maio de sessenta e oito. O Acossado é cheio de referências à cultura de massas. À cultura pop. Marcas de cigarros. De carros. Grifes. Cartazes de cinema. Letreiros eletrônicos. Músicas. Nomes. Pessoas famosas. Jornais. Pinturas. É um filme entulhado de referências comerciais. Assim como o Homem da Câmera de Filmar, O Acossado é o prenúncio dessa linguagem videoclipe popularizada anos depois na capa do Sgt Pepper`s e fincada de vez nos anos oitenta. É a explosão visual da sociedade de consumo. E sobrevive porque ao mesmo tempo é a negação de tudo isso. Os transeuntes observam as cenas a serem filmadas. Aparecem no filme como curiosos. Longe daquele um bilhão de figurantes de Hollywood. E distante do neorrealismo onde tudo era ensaiado com não-atores. Embora Godard filme em locais públicos, assim como os influentes neorrealistas ensinaram aos da Nouvelle Vague. A câmera na mão é um trabalho artesanal. Mesmo na cena em que Michel leva um tiro as pessoas andam como se nada estivesse acontecendo. É a representação da apatia. As dificuldades e os poucos recursos parecem ter ajudado Godard na representação do filme. Hoje ele é um oásis no meio de tanta informação perfeita, de tantas máquinas infalíveis, de tanta gente fazendo tanta coisa certinha, da fotografia no lugar certo, das cores berrantes e lindas que cansam os olhos e a própria beleza. O Acossado sobrevive. Pois através do simples foi capaz de representar o sublime. E de ser o três por quatro de uma geração que previu o futuro, mas que debochou dele, assim como fez piada com o passado.


Bibliografia

17. La Modernidad Cinematográfica Y Los Nuevos Cines, da obra Historia Del Cine de José Carlos Sánches Noriega (263-269) 
Jacques Mandelbaum Coleção Grandes Realizadores, Cahiers du Cinéma, Edição exclusiva para o Jornal Público, 2018.

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