terça-feira, 28 de junho de 2011

Panaceia

O meu pai atravessou a rua. Eu fui atrás dele. Ele não disse nada. Não consegui dizer nada. Ficamos uns bons cinco minutos calados. Séculos. Ansiedade. Eu estava com um bolo confeitado cheio de glacê na garganta. E ia pensando “porque diabos o velho não fala comigo? Preciso que fale!” olhei para os seus olhos e estavam vermelhos. Mas consegui ver uma gotinha que venceu a batalha. Quando ele me disse: cacete... Não se têm muitos shows bons assim nessa porcaria de cidade! Eu disse: é... Esse cara é muito bom! Nunca me esqueci daquele show. Atravessamos a rua e pegamos um ônibus em direção ao subúrbio. As outras pessoas ficaram por ali.

sábado, 25 de junho de 2011

Eu Acho Que Ainda Não Tá Bom

Por uma questão de educação perguntei a esse meu amigo. Você leu o meu blog? Li. Eu sei que ele não gosta das coisas que escrevo. É o tipo que diz: antigamente era melhor. Depois de algum tempo você escreve porque não consegue parar de escrever e já não se importa mais com a opinião dos outros. Ele disse: eu não gosto daquele troço de erro de português e palavrão, parece que tá querendo chocar, porra! Um escritor me disse: você não vai ler o meu livro porque já me conhece. Conheci alguns artistas insuportáveis pessoalmente, e continuei lendo e ouvindo as suas obras. Até aonde o artista é aquilo que faz? Eu penso que o artista e a sua obra se confundem, mas não são iguais. Alguns clichês são sempre válidos. Fico assustado quando sou associado ao que escrevo. Não sou aquilo, mas também sou. Eu ouvi o último disco de fulano de tal que está quarenta anos na música. E posso garantir que com o tempo ele ficou melhor. Embora ainda falem que não superou o primeiro disco. E com um velho escritor acontece o mesmo. No Brasil se enterra a pessoa viva. Ou será que é só a nossa inveja da capacidade do outro. As pessoas próximas são as que menos se importam com o quê quer que eu faça. Não aprenderam a separar a arte do artista. Todo mundo quando conversa comigo se torna especialista em música e literatura. Interrompi meus pensamentos. Ele parou e disse: eu acho que ainda não tá bom. Eu disse: eu também.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

A Cama É Um Lugar Seguro

Você chega a casa. Não há ninguém. Fica de quatro e começa a andar na tua covardia. Do jeito que você consegue. Você engatinha como uma criança que precisa de colo. Não acende a luz, pois não há Luz. Segue no escuro tateando o quê sempre dá uma sensação de insegurança. Nessa casa não há dinheiro. Não há mulher. Não há trabalho. Só as paredes. Você acabou de descobrir que não se pode fazer apenas o que quer fazer e o quê gosta de fazer. O mundo não deixa. E você sente a dor de uma furadeira varar tua barriga. Quer chegar a cama. Só isso que sonha agora. Aquela água salgada descendo dos olhos não te deixa respirar direito. Você consegue alcançar a móvel e se enfurna debaixo do cobertor que te acolhe igual útero. Você treme e se esconde do mundo. A cama agora é um lugar seguro. E você vai ter que ter o dobro de coragem para sair dela amanhã de manhã.

domingo, 19 de junho de 2011

Sem Pau

No dia anterior eu havia desafiado deus. Quem você pensa que é? Desce aqui se tu é homem! Dormi exausto de tanto chorar. No dia seguinte fui cumprir o ritual de mijar ao acordar. E milagre! Não havia nada no lugar do meu pau. Nada. Só um campo liso. Eu me olhei no espelho e pensei “eu sou o homem mais feliz do mundo!” Temi que chegasse o dia em que sentisse vontade de dar o rabo. Balela. O que me fazia sofrer era o excesso de masculinidade e não a ausência dela. Hoje eu penso em quanto tempo perdi tentando enfiar aquele pau em tudo que era buraco. Agora sou mais produtivo, já que nenhuma mulher vai querer um homem sem pau, não tenho que me preocupar com mulher nenhuma. Hoje eu tenho um milhão de amigas. Não tinha uma. E consigo ver beleza na natureza. Nos livros. Nos filmes. Choro no cinema com qualquer comédia romântica. Consigo ver beleza até nas mulheres! Antes eu só enxergava um traseiro e um par de peitos. Atualmente sou muito mais feliz e muito mais livre. Não faço nada para impressionar ninguém. Saio para dançar e conversar com as pessoas. Todos os meus problemas estavam relacionados aquele membro. Hoje eu me sinto leve...  Sem ele ali pendurado.

sábado, 18 de junho de 2011

Cosmética Classe A

Ele tava dançando. Chapado. Saidinho. Afro. Óculos escuros. Dread. Desencanado. Puxa-ferro. Hip-hop. ONG. Revista Raça. Modelo negro. Marcha da maconha. Jay-z no Rock in Rio. Samba de raiz. Comunidade. Não favela. Off-Lázaro Ramos. Cidade de Deus. Periferia. Literatura da periferia. Ponto de cultura. Viaduto de Madureira. Ensino médio completo. Ela adorou aquilo. Amiga. Sorridente. Branquinha. Zona-sul carioca. Maconha e doce. Bossa nova. Naipe de novela do Manoel Carlos. Olhos azuis. Coldplay no Rock in Rio. Samba de raiz. Universidade pública. Antropologia. Morou na Grécia. Garota de Ipanema online. Barzinho em Botafogo. Cosmética classe A. Ele segura o braço da menina. Ela estremece e lembra que adora ir ao subúrbio. Ele sonha acordar em frente à praia e ter água do mar batendo perto da janela. Quando diz: já vai sair? Ela responde: nós vamos ao show no Circo. Circo Voador na Lapa Rio de Janeiro. Show de reggae. Banda Jamaicana das antigas. Rastas igual a ele. Ele pensa que não vai dar. Nem que tivesse carteirinha de estudante. Ele diz: daqui a pouco eu vou... Ela diz: tudo bem. Ele acena. Lá nos falamos. E ela: O.K.  Ele mexe na carteira e tira o dinheiro do ônibus. Dá para beber mais uma cerveja. Mas não vai poder demorar muito, pois amanhã tem que acordar cedo.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

O Homem Cordial

Eu vi quando o cara da moto rapou no retrovisor. Ele disse: foi mal. O policial mandou: foi mal é o caralho! Vocês tão sempre querendo se adiantar! Eu dei um pinote pra dentro do ônibus. O motorista me perguntou: o quê aconteceu ali? Eu respondi: o maluco da moto esbarrou no retrovisor, aí já viu né? Ele disse: esses motoqueiros pensam que são os donos da rua... Rapaz; ainda jogo um pro alto! Neguinho pensa que eu tô brincado, Vai mesmo! Sem muita convicção, eu disse: eles sobem na calçada e tudo, maior vacilação aí! É mesmo, ele concordou. Aproveitado a intimidade perguntei: pô piloto, com todo respeito, tem como quebrar essa? Eu tô na correria, a merreca acabou. Ele olhou para o envelope na minha mão e falou: sobe lá por trás. Quando desci o ônibus acelerou. Eu sabia que aquele negócio de câmera não ia dar certo. Lamentava enquanto assistia o carro se afastar.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

O Menino Do Fundo Da Sala

O menino senta no fundo da sala. Ele sempre olha para fora e pensa na vida desperdiçada com matemáticas e mapas de lugares que não conhece. O menino adora os livros, e põe um deles por cima do caderno para fugir daquela escola. Mas ele continua lá. Mesmo quando o sol é bom. Mesmo quando faz o melhor sol que ele já viu. A professora um dia briga com um, e no outro dia briga com outro, mas ele continua lá. Ele não quer ter a vida que professora diz que é boa. Ele não quer ter a vida do seu pai. Ele não quer ter a vida que dizem que vai ter se não estudar. Ele ainda não sabe qual é a sua vida. Mas ele continua lá.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Mais Um Advogado Merda No Mercado!

Aí ele chegou com a cerveja. A gente embaixo da marquise. Tava um frio do cacete. Um frio que congela a armação dos óculos. Abriu a boca sai fumaça. O brilho dos faróis, dos olhos e da iluminação pública. Ele me disse: cara... Eu terminei a faculdade. Eu disse: Show! Ele tremeu e falou: num sei não. Eu devolvi a pelota. E agora? E ele: mais um advogado merda no mercado! Depois do silêncio voltamos a sentir aquele frio constrangedor.

sábado, 4 de junho de 2011

Ela Não Quer Mais Casar!

Ele me telefonou: já alugou o terno? Sim, então vem correndo pra cá! No caminho eu ia pensando o quanto era bacana que caras legais se dessem bem. O cara buscava a noiva todos os dias na faculdade. Ele saía de onde estivesse para fazer isso. Chapou com ela desde a época da escola. Ficou ligando de tempos em tempos: ainda tá namorando? Sim, então depois te ligo. Até que um dia ela disse “não”. Eles começaram a namorar e agora iam se casar. Eu ia ser o padrinho do casamento e provavelmente do futuro filho deles. Quando cheguei, ele me perguntou: seu terno é legal? Sim, meu terno é legal. E ele: que pena... Pois não vai ter casamento. Ela não quer mais casar! Ele estava tranqüilo. Sem essa de carpideira. Amor é coisa de viado. Homem trepa. Mas eu fiquei com uma vontade imensa de chorar. E só pensava que nunca ia ser padrinho de ninguém. Aquela porção de gente. Aquele dinheiro todo. Sei lá.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

A Crase

Levei meu texto para esse escritor ler. Afundei naquele sofá que me deu uma sensação de desequilíbrio. Escritor novo é foda. Ainda mais com essas novas tecnologias. País que ninguém lê. Pirataria. Filmes 3d. Ele me olhou como se eu fosse um passa fome. Não que eu não seja, mas jogar assim na cara é foda, né? Depois mudou a posição das pernas, tirou os óculos e disse: você só fala do teu bairro. E eu: é... Eu só falo do meu bairro. E pensei que nunca viajei de avião e queria viajar de avião. E que não conheço ricos depressivos ou policiais em crise. Ele me disse: gostei do teu livro, você escreve bem. “Eu escrevo bem”, pensei. Mas tem que melhorar o português, o texto está cheio de erros, sobretudo a crase, falou num muxoxo. Ele estava preocupado com a crase.