terça-feira, 22 de novembro de 2011
Milícia (Mal de Freixo)
Eu perguntei a ele: o quê você acha do prefeito defender a milícia? O cara falou
que elas resolveram o problema da violência em locais em que o governo não
chegava. Ele disse: não sei. Acho, eles sinistros. Ele mora num local onde tem
milícia. Olha a espuma no copo e acende outro cigarro. Eu pergunto: sinistros, como
assim? E ele: teve um dia desses que um moleque de dezesseis anos foi roubar em
outro lugar. Quando ele voltou não sei como, mas eles descobriram. Pegaram esse
moleque e a namorada de catorze. Espancaram até a morte. Não deram um tiro. Só
se ouvia os gritos. Num sei se isso é certo ou não. Os olhos dele brilham. Eu
digo: talvez, não.
sábado, 19 de novembro de 2011
Dia 20 de Novembro
Naquela família todo mundo
é preto. Eles estão na sala. Uns a favor. Outros contra. Onze pessoas. A tevê ligada
na teledramaturgia. O rastafári fala: cara, não há um viado preto com quem se
possa conversar nessa merda de país. Só um. Eles não entendem o que eu digo! A prima
do meio: mas os negros também não se dão o respeito... Já viu como esses putos entram
no ônibus? O tio mais velho: e os índios, cara?! O rastafári explode: eles que
se fodam! Eles que cuidem do seu próprio rabo. Todos têm que se defender cara. Os
índios, os viados, todo mundo. A prima diz: chamar de viado é preconceito! Ele balança
a cabeça como se não entendesse. A tia doutora numa timidez forçada diz: sou
contra cotas. Eu estudei em escola pública. O Rasta continua: já falei que não sou
contra cota pra pobre. Faça isso e os pretos serão incluídos. Depois que ele
diz isso de maneira incisiva, parece que chegam a uma trégua. E por alguns
segundos se instala o silêncio. Quando o primo gordinho faz um olhar de riso e interrompe:
aí primo, na novela quase não tem preto. O Rasta responde: é, mas tem uma
porção deles assistindo! A discussão recomeça. Com a mesma gritaria.
domingo, 13 de novembro de 2011
Bob Marley Desconhecido
Nós
andamos uma hora de ônibus. Trinta minutos a pé. Um tempinho para beber água e
ir ao banheiro. Ou seja, duas horas. Tudo para ver aquele que para a gente é um
herói, e pro mundo um completo desconhecido. Imagina um fã de reggae
conhecer alguém a altura de Bob Marley? era mais ou menos isso. Ele nos recebeu
na varanda. Parecia ansioso. Não conseguia se concentrar. O olhar sempre
perdido entre a tevê e o que estava dizendo. Num momento lá se levantou
para pegar o isqueiro, e seu amigo disse: ele não tá legal. Briga de família, coisa
de dinheiro... troço chato! Não parecia em nada com aquele cara que nós vimos pulando no palco. Era como se a porra de um gênio, tivesse preocupações
cotidianas demais. Infelizmente, verdade. Ele havia brigado com os irmãos. Um
treco desses. E isso me deixou deprimido. Aquele cara tinha que ficar sentado fazendo música, e não se preocupando com picuinhas.
Isso é para gente que não sabe a direção de sua vida. Quando nos levantamos, ele
disse: gostei de vocês. Por favor. Voltem novamente. É muito bom
conhecer alguém que gosta do que a gente faz. Quando pisamos a calçada, ela
me disse: tomara que ele fique bem. E eu completei: tomara. E ela: se
pudesse eu pagava esse cara pra ele só fazer música!
sexta-feira, 11 de novembro de 2011
Mas Continuo Doido...
Ele vende carro pra caramba.
Tem maior lábia. Não terminou o ginásio, mas lê o jornal O Globo para conversar
com os clientes. Já roubou som de carro, fumou e cheirou. Hoje fuma tabaco, toma
uma antes do almoço e outra depois do expediente. Batuca Jorge Aragão no
volante enquanto fala comigo. Ele se veste bem e comenta do perfume: conhece
esse? Antigamente saía fantasiado no Cacique de Ramos. Cumprimenta todo mundo
na rua. Toca pandeiro, e joga aquela pelada quinta à noite. Domingo vai com a "preta" e o filho na casa da cunhada, que faz o feijão do jeito que ele gosta.
Joga na maquininha, no bicho, tem sorte em tudo, até nas cartas. Além de ser
perito na sinuca. De maneira que já vi a rapaziada do morro abandonar a mesa
para não jogar com ele; que entre um pagode e outro, diz: larguei a vida doida,
mas continuo doido.
sábado, 5 de novembro de 2011
A Invasão
Ninguém morreu na porra daquela invasão, não morreu um moleque lá da área... Um
moleque da favela! Nenhum deles. Quando começou o tiroteio todo mundo foi pra
casa. Da entoca entra no beco e dá um assobio. Alguém abre a porta. Nós conhece a favela, né? Quem morreu era de fora. Os moleques de outras favelas, que
não conheciam o morro, e que ficaram perdidos. Eu vi dois deles... De moto... Os olhos
arregalados... Esses eu ajudei a fugir. Mas a maioria morreu. E
foi diferente dos números da televisão, é claro. Lá em cima do morro tava
cheiro de carniça. De tanta gente morta. Os porcos comeram tudo. Mas tiveram
uns que fugiram. Ele solta a fumaça e continua: eu saí tranqüilo. Não olhei nem
pra trás. Fui embora.
quarta-feira, 2 de novembro de 2011
Poodles
A menina mergulha na lata de lixo. O moleque espera.
Deve ter alguma coisa que preste ali. Tudo é lixo naquele lugar. Um cenário de
guerra, com homens mutilados e cadeiras de rodas. Ele assiste a cena de dentro
do ônibus. Tem uniforme, crachá, carteira assinada, e um tasco de um baseado
dentro do bolso. Não dá nem pra dar onda, ele pensa. Blitz. Um policial sobe no
lotação. Quando vê o cachimbinho de crack, sujo e enferrujado do moleque, ele diz
ao policial: aquele menor tem um cachimbo. O policial responde: não te
perguntei nada! Ele se cala. Depois diz: o Brasil não vai melhorar, eu tenho
certeza que o Brasil não vai melhorar... Quem disser isso tá mentindo. O Brasil
vai explodir e nós vamos morrer aqui dentro. Ele diz isso olhando para os
outros passageiros que se assustam. O policial ignora dessa vez. Depois ele se
lembra do poodle e fala: eu queria ser uma porcaria de um poodle. Alguém já viu
como essas madames cuidam deles? Eles têm até sapatinhos para não pisar no
chão. Eu queria ser a droga de um poodle daqueles. O policial diz: você quer
calar a porra dessa boca?! Um dos policiais revista a mochila de um homem que
subiu naquele ponto, e que vai perder 50 reais daqui a pouco. A menina saiu do
lixo e disse para o menino: nada! O motorista dá a partida. E ele diz
baixinho... Um poodle... A droga de um poodle!
sexta-feira, 28 de outubro de 2011
Porquês Inúteis
Seu Zé era um velho que tinha um bar com fliper na praça. Todo
mundo que jogava ali morreu de tiro. Quando meu pai me pegava lá dentro enchia o
meu saquinho. O Seu Zé andava de motinha com as mercadorias amarradas. E ele
mesmo dizia: essa mer... cadoria! As vezes eu pagava e dizia: obrigado. E ele:
você quer brigar comigo, rapaz?! E no dia em que o moleque disse: esse lugar
não tem nada, que lugar amaldiçoado! Ele Respondeu: vira essa boca pra lá,
rapaz! O Seu Zé levava as palavras ao pé da letra. E ele é tão presente com o
seu cuidado com elas, que eu estava aqui escrevendo, e me lembrei dele ao
perceber esse bando de porquês inúteis.
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