quarta-feira, 27 de abril de 2011

Ondas Gigantes

Era um cenário de filme pós-apolítico. Eu me lembrei do Mad-Max. O mundo era obscuro. A cidade quase vazia. Eu me encontrava dentro da carcaça de um ônibus embaixo de uma ponte. Dali avistei a rua alagada, era o dilúvio. Uma banca de jornal virada. Pelo canto do olho, eu vi surgir uma grupo de seres iguais aqueles zumbis de Eu Sou a Lenda. Eles estavam com cajados dentro da água. Não sabia se iam atacar. Próximo a eles também um ser mutante. Esse ser era um homem-mulher, talvez tivesse três seios, e carregava um pequeno ser. Uma espécie de profeta do novo mundo, imerso, gritava sobre nosso fracasso e os castigos de deus. De outro ônibus que servia como uma espécie de tenda para outras pessoas, um grupo atiçava e debatia com esse profeta. Quando resolvi ampliar minha visão, acordei e vi que estava em São Cristóvão na Rua Bela, num ônibus parado numa enchente. Um bêbado discutia com o pessoal do ônibus ao lado. Uns crackudos com pedaços de madeira tentavam encontrar alguma coisa de valor no meio de toda sujeira. Um travesti passava com uma criança no colo. E duas senhoras com os corpos cobertos davam um discurso: deus vigia, mas nós temos que acreditar! Quando um preto com uniforme da COMLURB disse: nós só vamos sair daqui amanhã de manhã. Uma das senhoras gritou: vira essa boca pra lá, um anjo de deus vai fazer descer essa água e tirar a gente daqui. O anjo de deus devia estar um pouco atarefado, pois a água só desceu quatro horas da manhã.

domingo, 24 de abril de 2011

Spray de Pimenta

Ele sabia que não era com ele, mas mesmo assim olhou para trás, a velha mania de pensar que todo mundo na rua quer falar com a gente. Ou quando toca o telefone. Interfone. O jato de espuma foi certeiro na cara. Era carnaval. Todo mundo riu e ele ficou sem graça. Naquele bloco ninguém dançava ou cantava, a praça foi tomada por uma guerra de espuma. Mas aquela cena o lembrou da manifestação no centro da cidade. Ele não gostava de estudar, e não pagava passagem, pois morava perto da escola. Então estava cagando para tudo aquilo. Mas cedeu para não ter que aturar a aporrinhação dos colegas. E de lá eles iriam para o shopping que era melhor que matar aula só e ficar sem nada para fazer. O quê ele pensa desse tipo de coisa? Ele pensa que a maioria da população prefere morrer de fome a fazer alguma coisa. Então que se danem! Ele divagava que não tinha nada contra aqueles guardas do cordão de isolamento, quando a bomba de efeito moral explodiu o deixando sem moral nenhuma. Azucrinado ele pensou: “Não tenho experiência em guerras, meu deus, mas se uma guerra for assim eu tô fora!” Quando conseguiu recobrar os sentidos falou para si: “Está tudo bem, agora eu vou embora”. O guarda veio por trás e zás! Espirrou gás-pimenta em seu rosto. Hoje seu apelido é Coquetel Molotov.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Pressão Psicológica

O menino me olha da mesa ao lado. Ele pensa que eu olho para a garota. Igual um palestrante nervoso ele não sabe o quê fazer com as mãos. A menina parece ter mais experiência. Ela olha para os lados e finge prestar atenção em algo que tem muita importância e que talvez vá dar assunto. Eu sei que é mentira e que aquela cena daquele velhinho tentando pôr a neta nos ombros não tem tanta importância assim. O menino veste o macho que defende o seu território e fica me encarando, mas ao mesmo tempo tem que se preocupar com o quê dizer a menina. Os olhares dos dois são sempre perdidos, para cima, para baixo e para o lado. Eu sinto que estou atrapalhando o fluxo de pensamentos dele. A menina não me percebe ou pouco se importa comigo, pois sei que estou ao seu lado no campo de visão. Ele de novo me encara e eu o encaro profundamente como quem diz: não dou a mínima para você. Eu quero é saber como ele vai sair dessa. Ela está à espera do que ele vai dizer se é que ele vai dizer alguma coisa. Ele entrega os pontos. Fica de pé e diz a ela: vamos dar uma volta. E me olha como quem diz: você venceu.

domingo, 17 de abril de 2011

A Estreia

Aquele segurança de boate me surpreendeu. O ambiente ficou com cara de área nobre. Eu estava curioso igual às crianças que foram levadas para lá por algumas professoras e para quem aquela porta era de chumbo. Os professores que moravam no bairro também estavam lá, e alguns malucos que ouviam música e fumavam erva. A minha preocupação na fila era: “Será que tem sofá aí dentro?” O negão que era o segurança me tranquilizou: “Tem. Tem sofá aí dentro.” E eu: “Show de bola!” E ele: “E vai ter café e água gelada, senhor.” E eu: “Massa!” De repente chegou um coroa de terno acompanhado de uma menina loura e magra de óculos que estava vestida como se fosse uma aeromoça. O Homem parecia ser o chefe de todo mundo. Eu me afastei intimidado e não ouvi o quê ele disse. Mas no final da embromação ele cortou a fita. Todo mundo como numa promoção de eletrodomésticos. Eu não acreditei naquele mundo de livros na estante. Era a primeira livraria decente entre muitos bairros do subúrbio. Eu não sabia por onde começar, não ia comprar nenhum daqueles livros, mas ia ler boa parte deles ali dentro.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Ele Era Divino!

Ele subiu cambaleando no mesmo ônibus que eu estava e sentou na escada para não pagar passagem. O motorista não pôde ver. Eu o reconheci logo, o cabelo grisalho, a barba mal feita e a camisa de botão aberta. Eu não teria coragem de falar com ele em outra ocasião, pois tem fama de mal-humorado. Mas ele estava tão bêbado que resolvi arriscar e disse: o meu pai conhece o senhor e... E ele disse: eu não me lembro de ninguém! Um tempo depois ele morreu de tanto beber. Mas dizem que antes de morrer comeu uma mulher mais nova que ele, e dizem que também fez algum dinheiro participando de um show de uma pagodeira famosa. Ele morreu na merda igual aqueles pintores antigos que morreram na merda e hoje em dia são nomes de serviços de banco, ou aqueles compositores para quem o pessoal do municipal cruza as pernas entre um bocejo e outro. A família dele mora na mesma casinha do subúrbio. Mas agora quando ele foi homenageado por sua escola de samba e sua obra virou tese em universidade e ele é cantado por sambistas que participaram da revitalização da Lapa, a madrinha da bateria que é atriz-modelo diz assim: ele era divino! Eu concordo que ele era divino!

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Roda Gigante

A escada que leva a Roda Gigante é enorme. A Roda Gigante é gigantesca. O meu pai diz: “Quando você crescer não vai achar a Roda Gigante tão grande assim.” Eu sinto que vou continuar vendo esta a Roda Gigante como imensa. A menina me olha da Roda Gigante. A Roda Gigante demora muito para dar uma volta completa. Eu quero que ela veja o quanto sou forte e como suporto bem todas essas voltas. Os meninos que conseguem suportar um giro da Roda Gigante sempre são recompensados com sorrisos e doces. Os olhos enormes da menina me acompanham do céu e ela tem um bocão com dentes grandes e brancos. Eu não estou aguentando e sinto vontade de vomitar as minhas tripas. O meu pai me pergunta: “Você é um homem ou é um bolinho de carne?” Eu quero dizer: "Eu sou um bolinho de carne!" Mas ele não vai entender. Quando a Roda Gigante chega ao cume eu sinto vontade de desistir. Enquanto penso isto, vejo a Roda Gigante chegar ao chão e me surpreendo por ter conseguido resistir. A mãe da menina a espera com os óculos na mão. Ela me olha com seus olhos estrábicos e me dá um sorriso. Ela põe os óculos e vai embora puxada por sua mãe.

Sujeito-Homem

O PM desceu do carro dizendo: eu vou perguntar só uma vez e não adianta mentir porque se eu encontrar vai ser pior, vamos lá, tem flagrante? Não, não tenho flagrante, o cara respondeu. O PM olhou desconfiado e disse: usou droga? Usei, ele falou tranquilamente. O PM mais uma vez: cheirou pó ou fumou maconha? E o cara: fumei maconha. Não cheirou pó? O PM insistiu. Não, não cheirei pó. O PM concluiu: isso é sujeito-homem! Vai lá, se adianta! E o cara continuou descendo a ladeira que dava para uma ruazinha do morro.